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Poder paralelo ameaça e expulsa padre
DA REPORTAGEM LOCAL
Periferia de São Paulo. Manhã
de sol. Oito homens armados entram em uma casa assistencial
perto de uma boca de tráfico. Escolhem um morador de rua atendido ali. Batem. Batem. Chutam o
rapaz magro, portador do vírus
HIV, que não enxergava direito,
que tinha dificuldade para andar.
Expulsam os funcionários, outros moradores de rua. Ajudam a
fechar as portas, os portões. Deixam um recado: ""Avisa o padre
que o traficante mandou fechar e
quer falar com ele agora".
Padre Paulo (nome fictício) é
um homem de estatura mediana,
fala calma, com quase 20 anos de
trabalho na periferia, que havia
aberto a casa dez dias antes.
Tinha apoio de uma comunidade católica e queria dar aos atendidos comida e noções de higiene.
O objetivo era resgatar os que, segundo as palavras dele, elegeram
as ruas da cidade como lar.
A Folha deixa de publicar a região da capital onde ocorreram os
fatos, no ano passado, e o nome
do padre a pedido dele, por causa
das ameaças que sofreu.
Não há registro oficial da história, porque a comunidade temeu
represálias. Na semana passada, o
padre rompeu o silêncio e contou
com detalhes a conversa que teve
com o traficante da região.
Após o ataque, à tarde, o recado
chegou até o padre. Paulo ouviu
na paróquia que não deveria ir.
Seguiu então de carro até a rua
do encontro. Estava sozinho, de
acordo com o aviso que havia recebido. Eram 17h.
Estacionou em frente a uma casa, fora da favela, onde havia um
churrasco. Viu motos e carros novos, 30 pessoas bem vestidas,
muita cerveja. Muitos pareciam
estar armados, pelo volume embaixo das camisas.
""O padre chegou. Veio pedir
benção ou nós é que temos de pedir benção?", recorda Paulo, sobre as piadinhas que ouviu.
O traficante apareceu depois,
vestindo roupas esporte e cordão
de ouro no pescoço. Na cintura,
observou o padre, havia um volume que parecia ser uma arma.
""Vim conversar sobre a questão
da casa, sobre o que aconteceu
hoje. Podíamos estar negociando.
Esse trabalho é importante", disse
o padre. Conversaram na rua, em
pé, rodeados pelos capangas.
""Não resta dúvida, padre. Seu
trabalho é belíssimo. Parabéns. Só
que na minha área, não. No meu
pedaço, não. Não quero esse tipo
de trabalho aqui", escutou.
O padre insistiu, defendeu o
projeto e suas qualidades. ""Se o
senhor quiser, a gente pode botar
até dentro da favela. Vagabundo
nenhum irá mexer com o senhor,
porque eu garanto. Ajudo até o
senhor a encontrar um lugar. Mas
aqui não", afirmou o traficante,
segundo o relato de Paulo.
Para o padre, a proposta não resolveria, pois moradores da favela
e de rua seriam misturados, alterando a característica do projeto.
Quis saber então por que o traficante havia sido violento, agredindo um morador. ""Ele está todo quebrado", disse. ""Padre,
preste bem atenção, aquilo não foi
violência, foi um carinho para o
senhor entender o aviso que eu
estava dando."
A conversa durou mais de duas
horas. Anoiteceu. Dois carros da
PM passaram na esquina.
""Já pensou meus amigos chegando aqui, encontrando moradores de rua? Depois tem a questão da violência, vai que assaltam
algum conhecido meu. Como é
que vai ficar?", disse o traficante.
Para o padre, ficou claro nessa
frase o motivo da disputa. ""O traficante fazia ali o tráfico de elite.
As pessoas de bairros ricos não
iriam querer entrar ali", disse
Paulo à Folha.
Antes de deixar a casa do traficante, Paulo atendeu a um pedido
dele: abençoou ele e seu filho recém-nascido. Ouviu ainda que
não deveria procurar a polícia.
Duas semanas depois, a casa para moradores de rua estava desativada. O rapaz agredido passou
por três cirurgias, mas seu problema visual se agravou.
""Fiquei com medo [de avisar a
polícia", confesso. Ele me ameaçou. Tinha muitas informações
sobre mim. Só não me falou o número do meu sapato", disse.
Hoje, a casa funciona em outro
bairro, distante dali, na região de
outro traficante, mais ""tolerante",
como descreve o padre.
(AS)
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