São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 2008

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CECILIA GIANNETTI

Malucos inofensivos


O sinal fechado me parece a eternidade. Desejo que um disco voador apareça e leve o trio ao seu planeta de origem

A FRICÇÃO URBANA sempre produziu muitos destes de boa estirpe, no meu entender e de acordo com minha experiência relacionada ao assunto, que é vasta. Considero-me apta a tratar deles, pois sou o que se convencionou chamar de seu "pára-raio".
Aos que não fazem idéia do que sejam os "malucos inofensivos", começo pelo óbvio: nada têm a ver com aquele que, sem qualquer motivo, empurra alguém para a morte nos trilhos de uma estação de metrô. Nem com policiais que atiram a esmo em crianças. Nem com o deputado Jair Bolsonaro, para quem "o erro foi ter torturado e não matado".
Noutro extremo, tampouco refiro-me aos que curtem desfilar na frente do espelho vestindo camisola, meias-calças e sapatos femininos de salto alto. (Estes são fetichistas, não são doidos nem carrascos). Por maniqueísta que pareça, pretendo definir os malucos inofensivos, pinçando exemplos da vida real.
Tarde de domingo; após mais de uma semana em que as previsões meteorológicas saem mais erradas que minhas respostas em provas de trigonometria na quinta série, finalmente chove e a temperatura no Rio baixa a incríveis 19C. Uau. Em respeito ao "inverno", saio de tênis em vez de chinelos.
Não devia ter saído. Logo na primeira parada, num bistrô no Flamengo, já entro de gaiata num filme de David Lynch. Vai ver o climão foi causado pela visita do cineasta ao Brasil. Ou o cappuccino que me serviram (enlatado, que não dissolve direito). Só sei que bebia esse café empolado quando um homem de seus 40 e poucos anos, "bem apessoado", passa encarando-me da calçada. Caminha um pouco mais, dobra a esquina olhando pra trás, pra mim. Pára. Acena. Pra mim. Diz à distância algo que não compreendo. Automaticamente, ergo o jornal à minha frente. Fosse um pedinte, um bêbado descalço, nada haveria de estranho na atitude. De camisa social, calça social, sapatos sociais, trata-se nitidamente de um "maluco".
Não se comporta como quem paquera. Parece um parente distante tentando restabelecer contato. Tão certo de que me conhece (de outra encarnação?) quanto estou certa de que nunca o vi antes. Ele volta e se aproxima da minha mesa. Os garçons estão hipnotizados por um jogo do Brasileirão numa tela de plasma. O homem me observa, mudo, estático. Torno a esconder o rosto com o jornal, pensando em "Veludo Azul", anões que falam palavras ao contrário e orelhas cortadas. O Vasco toma cinco gols do adversário até que eu baixe novamente a Folha; o homem está no mesmo local. Desaparece quando atendo o celular.
Esquinas adiante, aguardo no semáforo ao lado de uma velhota e seu cão e de um rapaz. Este pergunta: "É bravo?" Ela: "Não, se a pessoa não tem medo". O rapaz se abaixa para acariciar o cão. O animal começa a lamber a boca do rapaz, que não se esquiva. Pelo contrário, permite que lamba sua cara inteira. O rapaz não se levanta, o cão não larga dele, a velha ri. O sinal fechado agora me parece a eternidade. Desejo que um disco voador apareça e leve o trio de volta ao seu planeta de origem. Atravesso antes que alguém decida me lamber também e chego à rua do Catete, onde conheço todos os malucos inofensivos, e os camelôs que se multiplicam dos dois lados de uma calçada estreitíssima, e os distribuidores de papéis de propaganda "Compro Ouro" etc. Pergunto o preço de colares de cetim coloridos a um ambulante. "Um colá é oito, dois é três real". Hein? Não discuto, isso vale para diferentes malucos: melhor não contrariar.


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