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DANUZA LEÃO
Realidades
Tem muita coisa estranha
neste mundo, e o pior é que,
com o tempo, a gente se habitua a
elas (quase) todas. A estar com
um braço no gesso, por exemplo.
Estou com o meu há sete semanas: luxação no cotovelo, que dói
mais que todas as dores de cotovelo de amor que se tenha tido
(juntas). Além disso, fica-se completamente dependente para as
coisas mais básicas, tipo vestir
uma camiseta, puxar o zíper do
jeans, dar o nó no cordão do tênis,
cortar um pedaço de carne. E o
banho? Ler jornal ou um livro
com uma mão só é um problema
-tente-, fica difícil raciocinar e
tomar decisões e ainda tenho que
concordar quando ouço "você
ainda teve sorte de ter sido o esquerdo"; a vida é dura.
Pois sabe que estou me habituando? Mas amanhã vou tirar o
gesso e estou morrendo de medo
de ficar insegura sem ele. Mas ao
mesmo tempo já estou tão animada que resolvi escrever com
dois dedos, apesar de ser difícil e
lento: os pensamentos são infinitamente mais velozes do que os
gestos físicos, e estou na frente
do computador há horas -e
ainda com o gato no colo me
atrapalhando.
Voltando ao início, o homem se
habitua a tudo. Uns passam fome
por pobreza, outros pagam para
passar fome num spa; uns passam
oito horas por dia carregando peso: sacos de batata, móveis, até
pianos. Outros pagam para fazer
coisas bem parecidas -esportes- e poderem um dia, quem
sabe, disputar uma Olimpíada.
Com as dores da alma também
se acostuma até porque, se não
fosse assim, estaríamos todos
mortos; e as de amor, nem se fala.
Dessas, aliás, a gente costuma se
esquecer e depois pensar "ai, como eu era boba". Mas para todos
os sofrimentos existe um consolo:
pensar que no fim do dia se vai
poder esticar o corpo e dormir.
Dormir, seja lá como for, esquecer, seja lá do que for, e descansar.
É preciso descansar.
É preciso? Nem todos; outro dia
ouvi a história de Jailson dos Santos Soares, 21 anos. Sua vida é assim: na segunda-feira às 8h da
manhã ele entra na faculdade e
estuda até o meio-dia; de lá, sacolinha na mão, vai direto para o
trabalho que começa às 14h, num
serviço de resgate na Rio/São
Paulo (resgate é o socorro aos que
se acidentam na estrada). Passa o
dia, vira a noite, na terça de manhã toma um chuveiro, troca de
camisa e segue direto para a faculdade. Termina a aula ao
meio-dia de terça e volta para o
resgate, onde fica até a manhã de
quarta-feira. Para quem se perdeu: ele vai direto, acordado, da
segunda de manhã até a quarta
de manhã, quando mata a aula
para poder dormir. Na manhã seguinte (quinta) recomeça e só volta para casa no sábado de manhã. Simplificando, ele dorme
numa cama três noites por semana: às quartas, aos sábados e aos
domingos. Como agüenta? Ora, se
acostumou.
Dá vontade de chorar; deve ser
desesperador não poder cair na
cama no fim do dia. Mas Jailson
não chora nem se desespera: ele,
que queria ser médico, vai se formar em enfermagem, conta que
tem uma namorada e ainda diz
que adora o que faz.
P.S.: Se você troca de canal a
cada vez que começa o noticiário
de Atenas, não se sinta cometendo um crime hediondo; saiba que
não está só e que conta com uma
alma gêmea que faz a mesma
coisa: eu.
Na abertura da Olimpíada, disputando -com grandes chances
de vitória- a medalha de ouro
de uniforme mais feio de todas as
delegações, está o Brasil.
Aquele blazer cor de abacate sobre o saiote com o desenho do calçadão de Copacabana, em cores,
estava medonho. Se era para ser
verde, que ao menos combinasse
com o verde da bandeira.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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