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IMIGRAÇÃO
Risco de doenças como a tuberculose levou igreja e prefeitura a estudarem como atrair esse grupo para a rede pública
Ilegal, latino-americano vira "sem-saúde"
AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL
Estima-se que eles sejam 400 mil
só em São Paulo, 240 mil deles
"indocumentados", nome dado
àqueles que estão em situação irregular. Falam espanhol, guarani,
quíchua ou aimará, línguas dos
Andes bolivianos e peruanos.
Muitos vieram, em travessias
"clandestinas", direto para oficinas de costuras da região central
de São Paulo. Num mesmo espaço, eles comem, dormem e trabalham -às vezes 16 horas por dia.
Eles formam a comunidade latino-americana que vive em São
Paulo, onde predominam os bolivianos, paraguaios, peruanos, colombianos, chilenos. Mais recentemente começaram a chegar
também os argentinos.
Sem documentos, camuflados
nas multidões do centro, eles evitam as instituições e serviços públicos em que precisem apresentar os "papéis" que não têm. Para
serem atendidos nos serviços de
saúde, dependem da boa vontade
dos funcionários. E, da mesma
forma como "escapam" da polícia, também "escapam" dos serviços de vigilância epidemiológica.
Trabalhando e dormindo em
espaços apertados e não ventilados, comendo precariamente,
eles formam o caldo de cultura
para doenças como a tuberculose.
A Pastoral do Migrante estima
que 20 em cada mil deles possam
estar com a doença, o dobro da
incidência da região central de
São Paulo. O centro já tem o
maior índice do país por causa da
população de rua, cortiços, albergues e doentes de Aids. A incidência no Brasil é de 1,9 por mil.
Essa situação dramática e de risco para a saúde pública começou
a mudar na semana passada,
quando prefeitura, Pastoral do
Migrante e representantes da comunidade latina se reuniram.
A intenção é criar uma forma de
atraí-los para a rede pública, mesmo sem papéis, garantindo que
não serão vigiados ou presos pela
polícia. A política é semelhante
àquela hoje adotada pelo Ministério da Saúde para encorajar os dependentes de drogas a procurarem os serviços de saúde.
No caso dos latinos, a "operação" poderá ser facilitada com a
reabertura da rádio comunitária
Latin Sat, fechada na última sexta-feira, e que transmitia 24 horas
por dia em castelhano, guarani,
aimará e quíchua. Ouvida em boa
parte das oficinas de costura dos
bairros centrais, seria o meio para
falar com a comunidade.
"A intenção é usar a rádio como
meio de passar informações de
interesse para a comunidade e de
assegurar que podem procurar os
serviços de saúde sem riscos", diz
o padre Roque Pattussi, pároco da
Pastoral do Migrante.
A iniciativa é desafiadora. Enquanto a lei do SUS (o serviço público de saúde) garante atendimento a todos, sem excluir nacionalidades, os imigrantes estão ilegais, pelo menos enquanto providenciam os papéis.
O termo "indocumentado" foi
adotado como politicamente correto pelas instituições de saúde e
da igreja que lidam com os imigrantes. "Não se deve chamá-los
de clandestinos", diz Huda Farah
Siqueira Cunha, coordenadora de
saúde da Subprefeitura Sé. É nessa região que se concentram os
imigrantes latino-americanos, e é
nela que deve começar o trabalho
da prefeitura.
"A lei (do SUS) é para quem
cumpre a lei, e essas pessoas entraram de forma irregular", diz
Cunha. "Não poderiam estar
aqui, mas, uma vez que estão, precisam ser incorporadas ao sistema de saúde. Estamos estudando
um jeito de fazer isso."
O hospital ou posto costuma
pedir um atestado de residência e
um documento para que recebam
o cartão SUS. Como a maioria trabalha de forma ilegal, costurando
para os "patrões" coreanos, não
possuem atestados e evitam dizer
onde moram.
"É o ciclo do medo", diz a advogada Ruth Myrian Camacho Kadluba, filha de paraguaios e que
há dez anos oferece assessoria jurídica na Pastoral do Migrante.
"Eles temem que, uma vez doentes, com tuberculose, por exemplo, alguém da saúde vá até a oficina e constate que as instalações
não são adequadas. O agente terá
então que avisar o Ministério do
Trabalho, que, por sua vez, informará a Polícia Federal."
Se forem pegos, arcarão com
uma multa de R$ 838, mais a ajuda de advogados que a Pastoral
costuma oferecer, e terão três dias
para deixar o país. "A maioria desaparece na cidade e continua
aqui", diz Ruth Kadluba.
Pela lei, só pode permanecer no
país quem tem um visto, quem
tem um filho brasileiro ou se casa
com brasileiro. Para não correr
riscos, a gravidez não conta com
pré-natal, diz a advogada. E quando o pedido de permanência é encaminhado à Polícia Federal, a família recebe uma "visita social"
dos policiais. "Todos os ilegais
que moram ali acabam tendo que
se mudar com medo da tal visita."
A próxima reunião entre a comunidade, a prefeitura e a pastoral acontece amanhã. "Nossa
preocupação é com a saúde, não
com os papéis dessas pessoas",
diz Cláudio Luiz de Oliveira, que
representa a Secretaria da Saúde
nessas reuniões. Para a Pastoral
do Migrante, o problema não
existiria se a lei fosse modernizada. "É a lei que cria os ilegais."
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