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FIM DE UM CICLO
Após 40 anos, aumento do IPTU e do aluguel força proprietárias a encerrar as atividades na Peixoto Gomide
Kinkon, o chinês mais antigo de SP, fecha as portas
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Tudo se deu à maneira zen. No
domingo passado, Dia das Mães,
após servir as habituais porções
de frango xadrez e rolinhos primavera, o Kinkon encerrou com
discrição, "sem balulho", uma
história de quatro décadas.
Era o mais antigo restaurante
chinês de São Paulo e deixou de
funcionar não por falta de fregueses. "IPTU, muito alto. Aluguel,
caríssimo. Difícil continuar. Coração da gente fica partido,
mas...", lamenta Rita Doong Santos, 62, uma das sócias da casa.
No Brasil desde 1953, a comerciante ainda se atrapalha com o
português e, às vezes, engole uns
verbos ou troca graciosamente o
"r" pelo "l". "Vida assim: coisas
terminam."
A dicção peculiar de Rita, ora latina, ora oriental, espelha, sem
querer, a filosofia do Kinkon.
Fundado em 1960, o estabelecimento sempre procurou transitar
entre dois mundos. Adaptou pratos da China às características daqui. E transmitiu longínquos segredos culinários para um punhado de cozinheiros gaúchos, baianos, cearenses, mineiros.
De tal modo que, hoje, inúmeros restaurantes chineses da cidade carregam algo do Kinkon. Trazem, no cardápio, iguarias que
surgiram ali -e, não raro, também exibem, à frente do fogão,
profissionais que frequentaram as
panelas do veterano.
Falar em Kinkon significa mencionar, indiretamente, o extinto
Sino-Brasileiro. A história de ambos se confunde. O precursor, de
fato, é o Sino. Nasceu em 1954, no
bairro de Perdizes, como desdobramento de uma pensão que só
abrigava imigrantes. Fez tamanho
sucesso que os donos, oriundos
de Xangai, criaram o Kinkon.
A filial se localizava na avenida
Paulista. Em 1975, porém, se
transferiu para uma rua próxima,
a Peixoto Gomide, onde permaneceu até fechar. Ocupava, naquele endereço, um sobrado com
três salas, que podia reunir 200
clientes de uma única vez.
O Sino e o Kinkon compartilhavam o menu e o jeito de trabalhar.
"Quando os abrimos", recorda-se
Betty Ong, 84, outra das proprietárias, "não havia nada semelhante em São Paulo. Existia apenas
um restaurante do gênero no centro, pequenininho e bem simples.
Durou pouco."
Logo que apareceu, o Sino
atraía quase que exclusivamente
os estrangeiros. "Pessoal do Brasil
passava longe", conta Betty.
"Confundiam cozinha da China
com cozinha japonesa. Pensavam
que teriam de sentar no chão e comer peixe cru. Morriam de medo." A resistência diminuiu por
força de empresários chineses que
investiam no país. Interessados
em difundir a cultura natal, resolveram "adotar" o restaurante.
Começaram, então, a convidar
executivos locais para almoços e
jantares de negócio no Sino. "Foi
um estouro", descreve Betty.
"Preparávamos banquetes deliciosos, e brasileiros aplaudiam."
Conforme a clientela paulistana
aumentava, a casa ia suavizando o
cardápio e o tornando mais compatível com o paladar nacional.
Tome-se o exemplo do rolinho
primavera. Tradicionalmente, levava carne de porco, broto de
bambu e acelga. O Sino manteve
tal versão, mas inventou uma nova, que o Kinkon também adotou
e que se disseminou. "Substituímos a carne suína pela de vaca e a
acelga pelo repolho", explica Rita.
Na esperança de ajudar outros
conterrâneos, Betty sugeriu transformar os dois restaurantes em
uma espécie de escola, que arregimentaria aprendizes e os ensinaria a cozinhar. "Sofri quando vim
para cá, em 1950. Caí doente
-saudade imensa da China. O
Sino e o Kinkon me encheram de
alegria. Por isso, quis dividir felicidade. Garantir um ofício àqueles que acabavam de chegar."
A escola informal prosperou e
lapidou aproximadamente 200
"alunos" . De início, recebia apenas chineses. Depois, o leque se
ampliou.
Ciclo
Em 1994, o Sino cerrou as portas. O Kinkon -"pote de ouro",
no dialeto de Xangai- seguiu
adiante, oferecendo uma variedade de 109 pratos. Alguns conservaram-se muitíssimo exóticos,
como a salada de água viva e a sopa de barbatana de tubarão.
Nos tempos áureos, a casa possuía 30 funcionários. Ultimamente, contabilizava oito, incluindo o
chefe de cozinha, paraibano.
Em 2002, o IPTU do sobrado na
Peixoto Gomide saltou de R$ 9
mil para R$ 18 mil. Este ano, inchou mais um tanto: R$ 20 mil.
"O aluguel quase dobrou. O dólar,
elevado, encareceu as diversas
matérias-primas que importamos. Se subíssemos preço dos
pratos, fregueses iriam sofrer", argumenta Rita. "Melhor parar. Estamos todos cansados." Os proprietários tentam, agora, vender o
nome do estabelecimento.
"Não gosto de pensar que acabou. Péssimo. Péssimo", diz a
professora Christine Yufon, natural de Pequim e assídua cliente do
restaurante. "Prefiro raciocinar
como budistas -é só um ciclo
que se completa. Só um ciclo. Outros irão começar."
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