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Após evitar demolição do Caetano de Campos, advogado de 71 anos tombou o bairro paulistano e de quebra a serra do Mar
Muito além dos Jardins
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Visualize São Paulo sem o prédio do Caetano de Campos, na
praça da República. Ou sem os
Jardins. Ou sem o pouco que resta
da serra do Mar. Entre os anos 70
e 80, um paulistano de bastos bigodes brancos, olhar suave e argumentação de tribuno romano
teve a mesma visão e agiu para
que ela nunca se concretizasse.
Seu nome é Modesto Carvalhosa, 71, advogado especializado em
direito societário, autor de livros
sobre o tema, sócio de um escritório respeitado, professor da Faculdade de Direito da USP entre
1971 e 1985 e presidente do Condephaat entre 1984 e 1987.
São desse período suas duas
realizações mais polêmicas, o
tombamento dos Jardins e da serra do Mar. "Mas meu amor por
São Paulo começou antes", diz ele
durante entrevista à Folha em seu
escritório, uma casa plantada entre os espigões residenciais da rua
José Maria Lisboa, em São Paulo.
Primeira memória
Bem antes. No caso, entre os
anos 30 e 40, sua primeira memória da cidade, quando, criança,
morava com seus pais e os avós
maternos num casarão em Higienópolis. "Naquela época, era costume os filhos viverem com os
pais mesmo depois de casados."
Estamos no número 768 da rua
Baronesa de Itu. A casa em que
mora o pequeno Modesto Souza
Barros Carvalhosa tem 20 metros
de frente num terreno de 80 metros de comprimento. "No fundo,
um quaradouro de roupa, galinheiros, um galpão para guardar
varas de pesca, fantástico, em plena Higienópolis", lembra.
Ali, os costumes eram rígidos e
deviam ser respeitados. Às 20h
pontualmente, todos jantavam, e
os adultos discutiam as notícias
internacionais dos jornais. Então
os avós se recolhiam para um
enorme quarto ao lado da sala e,
aos poucos, os filhos e suas famílias iam subindo. Às 22h, entrava
em vigor a lei do silêncio.
"É que não havia laje, então
qualquer barulho no andar de cima ecoava pela casa inteira", conta ele. Durante o dia, as crianças
eram proibidas de entrar na biblioteca. "No máximo, meu avô
nos deixava ouvir com ele o programa "A Música dos Mestres", na
rádio Gazeta, sempre às 13h."
De lá, Carvalhosa mudou com
os pais para o número 838 da rua
Dr. Homem de Melo, em Perdizes, na mesma construção que depois sediaria o restaurante espanhol Cantábrico, uma casa erguida pelo Homem de Melo que dá
nome à rua, com projeto do início
do século feito pelo renomado arquiteto Ramos de Azevedo.
De lá ele se lembra de um galinheiro "enorme", postado no
quintal, de uma varanda larga e
do cheiro de madressilva. Só sairia do teto mantido pelo pai, o
professor de literatura inglesa e
pastor da Igreja Presbiteriana
Modesto Carvalhosa, para se casar. Já com a artista plástica Helena Carvalhosa, instalou-se na rua
Polônia, onde ela mora até hoje.
Dali veio a primeira briga e o germe do que depois viraria gosto
pela causa do patrimônio histórico e urbano. Em 1970, quando a
cidade era comandada por Paulo
Maluf em seu primeiro mandato,
a mãe do prefeito, a mítica dona
Maria, mudou-se para a casa ao
lado dos Carvalhosa, na esquina
das ruas Sofia e Inglaterra.
"Ela havia acabado de comprar
o que restara da fazenda dos Crespi e ali construiu sua casa, um palacete que ocupava 80% do terreno de uns 2.500 metros quadrados", conta o advogado. "Pois sua
primeira providência foi mandar
arrancar todas as árvores de jacarandás-mimosos da esquina."
Carvalhosa mandou aos jornais
uma carta em que analisava a atitude da mãe do prefeito sob a ótica da psicologia. "Estávamos na
época mais dura do regime militar, ninguém falava mal de uma
autoridade indicada por eles,
muito menos de sua mãe." A repercussão foi tão grande que as
árvores voltaram - "Não os jacarandás-mimosos, que já não viviam mais, e sim outras, enormes,
que estão lá até hoje."
Mas foi da condição de ex-aluno
do tradicional colégio Caetano de
Campos, na Praça da República,
que viria o reconhecimento público. Em 1975, a gestão do prefeito
Olavo Setúbal decidiu derrubar o
prédio histórico de 1894, por onde
passaram alunos como Mário de
Andrade, Cecília Meireles e Sérgio
Buarque de Holanda, para dar lugar a uma megaestação de metrô.
Carvalhosa reuniu ex-alunos
ilustres, e juntos entraram com
mandado de segurança para impedir a destruição. Segundo recorda, conseguiram apoio dos
jornais e da população mais ou
menos ao mesmo tempo, e o movimento antidemolição cresceu.
"Foi a primeira reação popular
contra uma decisão do regime
militar desde 1969", contabiliza.
O juiz decidiu acatar o mandado, mas chamou antes o então secretário de Educação, ao qual o
prédio era subordinado, para o
prevenir da derrota. "Foi assim
que nasceu o decreto que tombou
o Caetano de Campos, em 1975,
para evitar vexame maior", relata.
O esforço lhe renderia mais tarde o convite do então governador
emedebista Franco Montoro para
presidir o Condephaat em sua
gestão (1983-1986). À frente do
órgão estadual de preservação do
patrimônio histórico, tomaria
suas decisões mais polêmicas.
A primeira: tombar os Jardins.
Não uma casa, uma construção,
uma igreja, mas a região inteira, a
área formada pelos jardins América, Europa, Paulista e Paulistano, num quadrilátero que vai do
Ibirapuera à avenida Rebouças,
da rua Estados Unidos à avenida
Faria Lima. "A idéia nasceu de um
movimento de salvação de bairros com massa vegetal grande e
construções baixas", resume.
O plano era ambicioso: a incorporação de toda a região ao parque do Ibirapuera. "É um projeto
futurista, para 50, 80 anos". A
ação abriu caminho para outros
tombamentos de bairros inteiros,
que viriam nos anos seguintes,
como o do Pacaembu. E comprou
briga com o então prefeito, Jânio
Quadros (1985-1989).
Resistência total
"Houve uma resistência total
dele, que tomou todas as medidas
possíveis, pessoais inclusive", diz
Carvalhosa. Ele conta que à época, dando aulas na USP, emitia
pareceres da casa ao lado à qual
morava, na rua Inglaterra. "Foi o
suficiente para o prefeito chamar
a imprensa e declarar: "O presidente do Condephaat tem escritório em zona residencial!". Tive de
mudar de lá para onde estou."
A segunda polêmica veio logo
depois, com o tombamento da
serra do Mar -em sua "totalidade e integralidade". "Também sofreu resistência, mesmo dentro da
USP, onde alguns acharam exagerado, mas depois acabaria sendo
o embrião do tombamento nacional e de movimentos como o da
SOS Mata Atlântica e outros."
Agora, Modesto Carvalhosa anda mais calmo. Pai da assessora
de imprensa Sofia e do radialista,
músico e performático Luiz Antônio, também conhecido como Jai
Mahal, e casado pela segunda vez
com Claudia Silveira Correa, dedica-se mais aos netos, Gil, 21,
Marina, 13, e Ananda, 11.
Até comprar a próxima briga.
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