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DEPOIMENTO
Mandarim, a outra muralha da China
BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Comecei a estudar chinês (mandarim) achando que, para ler e escrever, bastava compreender o
sentido de cada um dos mais de 10
mil caracteres e depois combiná-los em frases, como num código
simplista e infantil em que não
houvesse expressões idiomáticas
próprias. Quebrei a cara.
Quando fui à China, em 2002,
comprei um livro que promovia
um método autodidata e gastei
meus dias a tentar decifrar as frases mais simples, em vão. O sentido era uma parede intransponível. Desafio quem supõe que uma
língua sem conjugação de verbos
não pode ser difícil a tentar entender a lógica peculiar por trás da
sintaxe do chinês.
De volta ao Brasil, passei a estudar com uma professora de Taiwan e o que já não era simples se
complicou. Em Taiwan, ainda se
usam os caracteres clássicos, com
mais traços do que os caracteres
simplificados adotados pelos comunistas.
Para dificultar as coisas, e ao
contrário da China continental,
que se serve do alfabeto latino para fazer a transliteração dos ideogramas (pinyin), no chinês tradicional o som das palavras é dado
por um outro sistema de signos
(zhuyin fuhao), que o aluno precisa decorar além dos milhares de
caracteres.
Quando a minha professora taiwanesa resolveu tirar férias, aproveitei a oportunidade para substituí-la por alguém da China continental. Até certo ponto, foi um
alívio. Meu objetivo era ler textos
no original e traduzi-los. Como
tudo avança muito lentamente
para um estudante de chinês, decidi me adiantar e propor à nova
professora que lêssemos juntos
um conto de Lu Xun, maior expoente da literatura chinesa do século 20. Eu tinha comprado, em
Xangai, a edição bilíngüe oficial,
em chinês e inglês, dos seus contos reunidos.
Começamos por um conto cuja
tradução em inglês não podia ser
mais clara e simples. Mas tive de
desistir logo na primeira linha,
porque não havia jeito de encontrar entre os caracteres chineses
naquela frase nenhum que correspondesse aos "dois irmãos" da
tradução em inglês.
Tentei conter as minhas ambições e voltei ao dia-a-dia de um
aluno modesto. Fiz bem, porque
mais de um ano depois ainda
morro de medo e de vergonha
quando a professora anuncia uma
aula de conversação. Graças à homofonia, que faz com que caracteres díspares tenham o mesmo
som, e da dificuldade (incapacidade, no meu caso) de distinguir
os quatro tons que, aplicados a cada vogal, mudam o sentido das
palavras, nunca sei se ela está me
perguntando como vai minha
mãe ou se comprei um cavalo.
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