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SP 450
O texto abaixo inaugura a seção "Caminhos da Memória", em que personalidades selecionadas apresentam todos os domingos sua visão de São Paulo, numa série que será publicada até o aniversário da cidade, em 25 de janeiro
Notas de uma música da grande cidade
Rua Batatais, 558, quase esquina com Pamplona. É o
edifício Saint Paul, o flat
dos Jardins onde aterrissei quando cheguei a São Paulo em 1986 e
do qual, até agora, nunca saí (salvo dois anos na alameda Itu, explicados mais adiante).
Vinha da França, e talvez a tradução de São Paulo para Saint
Paul tornasse a transição mais
suave. Aliás, olha só o destino,
meu primeiro consultório em Paris, em 1974, era na rua Saint Paul,
número 32.
O edifício Saint Paul é um concentrado da vida urbana. Mais da
metade dos apartamentos são
ocupados por condôminos, o que
permite aquela fala que não significa nada ("esfriou de novo, quando chega o verão?, um bom dia
para o senhor"), mas que é essencial para entreter a ilusão de que
não estamos sozinhos.
O resto dos apartamentos é um
caleidoscópio da cidade. Alguns
vizinhos dos últimos meses: Sarali
e Daisy (as gêmeas da capa da
"Playboy" de fevereiro), Roberto
Carlos (o jogador de futebol, não
o cantor), Márcio Santos (zagueiro de 94), uma quadrilha de clonadores de cartões de crédito (isso a gente soube quando foram presos), agentes do Departamento de Narcóticos (que
se hospedaram para encomendar droga e planejar armadilhas),
um sequestrador chileno confirmado e outro que parece que não
é, a dona Lia, leitora de tarôs e búzios, que transformou sua sala
num terreiro e deixava a porta escancarada bem ao lado da minha
etc. Para mais detalhes, pergunte
para o senhor Vilmondes, gerente do condomínio, que vive desde sempre numa nuvem de fumaça, jurando
que está parando de fumar.
O espaço onde a rua é amiga
Esquina de Batatais com Pamplona. É, para mim, o vilarejo,
aquele espaço da cidade, perto de
casa, onde a rua é amiga. Há, embaixo do Saint Paul, o restaurante
Tatini, onde Mário e Fabrizio Tatini têm a receita de meu prato anticolesterol preferido: peito de
frango com fungo e alcachofras
puxados no azeite. Há a banca de
jornais da esquina: o dono, Rodrigo, é um leitor voraz, cursa jornalismo à noite e quer tornar-se escritor. Um dia, ele estava preocupado com a quantidade de correções e versões sucessivas pelas
quais sentia a necessidade de passar seus textos; mostrei-lhe o manuscrito atormentado de uma de
minhas colunas. Nos consolamos
mutuamente.
Ao lado da banca, há o Café Conosco. Ponto alto: sanduíche
quente de peito de peru, tomate
seco, rúcula e pesto; chama-se verão na ciabata. Leonel, no caixa, é
descendente de italianos; temos
conversas de patrícios, com lamúrias sobre o destino do Palmeiras.
Junto com a loja Pour un Homme, Alan, que corta meu cabelo, e
os motoristas do ponto de táxi são
as figuras que injetam no dia-a-dia o conforto da familiaridade.
O vínculo Milão/São Paulo
Alameda Itu, 174, esquina com
Pamplona, edifício Rosália. O prédio, que, sobretudo hoje, tem pouca graça, é um estranho vínculo de
minha origem milanesa com São
Paulo. Um dia de 1989 ou 90, meu
pai ligou de Milão e me disse ter recebido um telefonema de um tal
Orlando de São Paulo: algo a ver
com um prédio e com Adriana
Querci Guetta, uma querida amiga
de família (cujo marido, então
morto, fora, para mim, uma espécie de mentor na adolescência).
Adriana perdera-se na demência, e meu pai era seu tutor e futuro executor testamentário.
Do telefonema de Orlando,
meu pai não entendeu nada,
mas pensava ter conseguido transmitir, numa mistura de espanhol e italiano, meu número. De fato,
Orlando me ligou.
Descobri assim que o
prédio em questão pertencia a Adriana (herança
de seus pais que moraram
em São Paulo antes da guerra).
Há anos, Orlando, porteiro e "factótum", não recebia notícias da
dona que ele servira durante mais
de três décadas. Agora, ele estava
para ser posto para a rua por uma
administradora que declarava ter
instruções diretas de Adriana.
Gostei de Orlando e, para melhor tomar conta da situação, aluguei um apartamento no prédio.
Em nome do meu pai e de Adriana, autorizei Orlando a transformar a garagem do edifício em quitanda. Durante dois anos, acordei
na alta madrugada ao som do inverossímil motor de arranque da
F-1000 de Orlando que saía para o
Ceasa.
Quando Adriana morreu, encontrei seu testamento brasileiro,
que deixava o prédio a instituições caritativas. A caridade consistiu no seguinte: as famílias que
moravam no edifício e os comércios da esquina foram despejados,
para facilitar a venda. Orlando encheu sua camionete e foi-se para
perto de Belo Horizonte.
Daquela época, sobram na garagem frases que Orlando pintara:
"O que é bom não é caro", "Não
aperte as frutas", "Seja bem-vindo" e "Fiado só dá complicações"
(Orlando vendia fiado e não se
lembrava dos devedores).
O prédio está, há anos, fechado,
às traças. Depois a gente estranha
a chegada de sem-teto...
O centro simbólo da cidade
Avenida Paulista, na altura do
Masp. É, para mim, o centro simbólico de São Paulo e talvez do
Brasil. De um lado, o edifício do
Masp afirma a ousadia do sonho
moderno e americano de construir um mundo novo. Embaixo
dos pilares do Masp, domingo de
manhã, a feira lembra que, apesar
do sonho de modernidade, não
conseguimos nos desfazer das mil
coisas que nossos antepassados
trouxeram (ou nós mesmos trouxemos). Na frente do Masp está o
parque Trianon, para
lembrar a exuberância
da vegetação tropical e
(de noite) a dos corpos.
Entre os dois, de costas
para a dupla luxúria do
Trianon, uma pitada de
espírito bandeirante completa o prato: a
estátua do
Anhanguera.
Na base da estátua, o moto:
"Acharei o que
procuro ou
morrerei na empresa". Como tenho o
péssimo costume de
falar sozinho, cada vez que passo
na sua frente, resmungo: "Pois é,
morreremos na empresa...".
Entre livros e papéis
Conjunto Nacional, esquina
com a Augusta. Oscilo entre a livraria Cultura e as papelarias Nacional ou Viacor, dividido entre o
gosto pelos livros e a paixão por todo tipo de
instrumento para
escrever. Livrarias e papelarias deveriam estar
juntas, pois
qual é a graça de ler sem
o sonho de
escrever?
Galerias e falsificações
Descendo a rua Augusta, na calçada oeste, duas galerias.
Primeiro, o Promocenter. São
lojinhas abarrotadas, que vendem
imitações de bugiganga de marca.
Como detesto o uso de logotipos
como sinal de status, a falsificação
me parece uma grande estratégia
subversiva. Fica com você pagar
US$ 400 ou R$ 25 por bolsas que
ninguém distingue direito. A malandragem transforma o privilégio em babaquice.
Um pouco mais embaixo, há
uma pequena galeria a céu aberto,
a Galeria Augusta. Salvo no horário de almoço, a galeria é o contrário do Promocenter: despojada e
tranquila. Nela, durante anos, havia uma loja sem letreiro e com
uma vitrina vazia: não dava para
entender o que estava à venda.
Nunca ousei entrar e perguntar
para a moça, que estava sentada
atrás de uma mesinha, o que eles
ofereciam. Era, para mim, "a loja
que não vende nada", uma declaração surrealista contra o consumo. Pois bem, a loja que não vende nada fechou. E nunca saberei o
que (não) vendia.
Aromas, botecos, quitinetes
Rua Paim, 211/235. São dois
imensos prédios, que já foram
considerados uma espécie de favela vertical e hoje são uma cidade
de pequena ou pequeníssima
classe média urbana.
Anos atrás, durante um breve
tempo, aluguei um apartamento
no 211. Nunca cheguei a mobiliá-lo. Só ia para lá à noite; ficava no
escuro, contemplava a vista (imperdível) de toda São Paulo ao
norte da Paulista, escutava os gritos, as falas e mesmo os sussurros
dos adultos e das crianças que lotam as quitinetes, cheirava uma
inimitável mistura de (excelente)
caldo de feijão com mofo e produtos de limpeza baratos. Era meu
jeito de integrar a cidade um pouco além de Jardins, Higienópolis,
Pacaembu etc. E de
lembrar-me de
que vidas aparentemente distantes da minha
produzem os
mesmos barulhos e exalam um
perfume apenas diferente.
Ainda volto, de vez em
quando, ao Café Adriata's,
embaixo do 235, para bater
um papo, ou à Cervejaria
Viagem (entre os dois prédios) para jogar snooker.
Um túnel liga emoções
Da rua Paim, a volta para a zona
sul passa pelo túnel da 9 de Julho.
Três vezes atravessei o túnel a pé,
sempre com a sensação injustificada de praticar um esporte de alto risco, talvez pelos olhares perplexos dos que passavam de carro
e se perguntavam o que diabo este
cara estava fazendo aí. O cheiro de
gasolina, o ulular dos motores no
espaço fechado e a sensação de
desamparo apesar da proximidade (os carros passam muito perto,
mas não têm como parar) compõem uma espécie de poema urbano concreto, olfativo, afetivo e
sonoro.
Para ouvir a música da grande
cidade que é São Paulo, é preciso
misturar esse "poema" com as vozes familiares do vilarejo da esquina de casa e com os gritos e os sussurros atrás das paredes da rua
Paim.
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