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OPINIÃO ECONÔMICA
O que faria o barão?
RUBENS RICUPERO
Cem anos atrás, a política externa brasileira enfrentava
dois formidáveis desafios que voltam a nos pôr à prova sob roupagem diferente. O primeiro era como
lidar com uma súbita transformação da estrutura mundial de poder
que nos afetava diretamente. O segundo era inserir o país num sistema internacional profundamente
alterado por um processo de globalização sem precedentes.
Nesta semana, em Brasília, deu-se início às comemorações do centenário da longa gestão do barão
do Rio Branco como ministro das
Relações Exteriores, a partir de 1º
de dezembro de 1902, nove anos e
pouco da mais brilhante e criativa
estratégia externa desenvolvida pelo Brasil.
Não eram só as questões globais
que nos pressionavam então. Os
problemas fronteiriços eram prementes e alguns, como o do Acre,
explosivos e inadiáveis. Tratava-se,
porém, no fundo, de questões típicas do século 19, a serem resolvidas
com métodos daquele século, corretamente aplicados, o que se fez com
incomparável competência. Estavam também inseridas no eixo das
relações com nações das quais não
nos separavam grandes diferenças
de poder, ou, quando estas existiam, tendiam a favorecer-nos (casos da Bolívia e do Peru no Acre).
Já os desafios globais tinham natureza diferente e pertenciam a outra esfera, a das relações com as
grandes potências, perante as quais
estávamos inferiorizados por um
diferencial de poder tamanho que
éramos obrigados a inventar um
jogo defensivo mais sutil e indireto.
De um lado, pesavam sobre nós as
ameaças do imperialismo europeu
no apogeu de sua arrogância e
agressividade. A ilha da Trindade
tinha sido ocupada pelos ingleses
anos antes, tivéramos choques armados e sangrentos com os franceses em Calçoene, no Amapá, e haveríamos de provar no futuro a
prepotência teutônica no perigoso
incidente do Panther. Do outro lado, a emergência dos Estados Unidos como potência global era um
verdadeiro terremoto na estrutura
de poder tradicionalmente dominada pela Europa e não podia ser
ignorada, pois ocorria no espaço
continental a que pertencíamos. A
estratégia de Rio Branco consistirá
essencialmente em fazer uso do segundo fenômeno para neutralizar
os perigos decorrentes do primeiro,
mediante a "aliança não-escrita"
ou opção preferencial por Washington.
Explorando, no jargão marxista,
as "rivalidades intra-imperialistas", o barão apoiou a Doutrina
Monroe e o pan-americanismo patrocinados pelos EUA. É verdade
que o poder americano se expressava às vezes de modo truculento
-na política do "Big Stick" de
Teddy Roosevelt, por exemplo. Ela
se exercia, contudo, longe de nossas
fronteiras, contra Cuba, contra o
Panamá, contra a América Central, contra o Caribe, não no Amapá ou em Roraima. O que pragmaticamente interessava a Paranhos
era obter o apoio ou a simpatia
americanos nas questões fronteiriças contra os europeus e os latino-americanos e colaboração e ajuda
na projeção do Brasil no continente
ou no mundo. Quando isso não era
possível, não hesitava em tomar
partido contra os EUA, como fez
nas instruções a Rui Barbosa em
Haia. Seu objetivo era tornar a
Doutrina Monroe uma política de
defesa coletiva das Américas, e não
mais um instrumento unilateral
dos americanos, o que não conseguiu devido às resistências encontradas na Conferência Interamericana de Buenos Aires de 1909.
Ao mesmo tempo que assim lidava magistralmente com o poder
mundial em mutação, Rio Branco
percebeu que a fase da globalização vitoriana modificava em prejuízo do Brasil o sistema de poder
na América do Sul. Na nova etapa
da divisão internacional de trabalho que veio então à luz, os mais favorecidos foram a Argentina e, em
menor grau, o Uruguai, exportadores de produtos temperados (carnes, trigo, cereais, lãs), em forte demanda na Europa urbanizada pela Revolução Industrial. Fornecedora de produtos tropicais de sobremesa (açúcar, café, cacau) desde o início da colônia, a economia
brasileira beneficiou-se menos em
matéria de investimentos e financiamentos ingleses, de expansão
das exportações e até do afluxo de
imigrantes em termos relativos à
população. A rápida prosperidade
da Argentina e sua modernização
em decorrência da plena integração da economia ao sistema europeu não poderiam deixar de acarretar um reforço do poderio militar
e estratégico platino em época de
aguda rivalidade com o Brasil.
Aqui também o caminho encontrado pelo barão para contra-arrestar essa tendência foi acentuar a
inserção brasileira no sistema econômico cujo centro era não a Europa, mas os EUA. A realidade objetiva justificava a escolha, pois nesse
período o mercado americano absorvia cerca de 36% das exportações brasileiras (contra 25% a 18%
hoje), era o principal importador
do nosso café (mais de 50%), da
borracha e do cacau, os investimentos ianques concentravam-se
na indústria de transformação, no
automóvel, no novo, em contraste
com os britânicos, que preferiam as
ferrovias e os serviços públicos (como hoje fazem os capitais espanhóis e portugueses).
As fórmulas do barão deram certo, convertendo-se por longos anos
em paradigma incontornável da
política externa brasileira. Agora,
talvez pela primeira vez em um século, defrontamo-nos com dilemas
tão desafiadores como os de 1902.
Eles apresentam semelhanças de
ordem geral com os do passado já
que de novo temos de nos definir
diante de alteração radical na estrutura mundial de poder e em relação a uma fase muito mais intensa de globalização. Desta vez, no
entanto, não é o sistema multipolar
a incorporar novo ator principal
como os EUA, mas são estes últimos que engolem o multipolarismo
para concentrar quase todo o poder. O problema é saber se esse poder será exercido unilateralmente
ou se será possível, em alguma medida, colocá-lo a serviço de ordem
internacional consentida, tolerante, generosa e justa e que papel poderia ter a diplomacia brasileira
nesse esforço. O mesmo dilema nos
desafia no caso da atual fase da
globalização, que marginalizou a
Argentina, deixou o Brasil em posição precariamente intermediária,
mas inconfortável, e privilegiou o
México por meio de sua incorporação ao espaço econômico da América do Norte. Será viável construir
um tipo de inserção internacional
que compatibilize uma Alca mais
equilibrada e equânime com as
oportunidades abertas pelo multilateralismo comercial em relação à
Europa, à Ásia, a todas as regiões e
países, essência da genuína globalização?
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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