São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

O partido do medo

RUBENS RICUPERO

"Não temerás terror algum durante a noite", promete o salmo 90, nem a flecha disparada em plena luz, nem a pestilência que ronda no escuro, nem a desgraça que devasta ao meio-dia. Em começo de século cada vez mais marcado pelo terror, nenhum outro exorcismo é tão apropriado.
Escrevo em Tóquio, ao iniciar o regresso de viagem que fiz ao Japão e à Tailândia. Pouco antes, havia passado quase uma semana em Nova York. Medo é o que mais encontrei por toda parte. Os tailandeses têm medo do medo dos outros, medo de que os constantes alarmas americanos por motivos às vezes fúteis paralisem uma de suas principais atividades, o turismo. No Japão, pela primeira vez ouvi gente de alto nível no governo expressar o temor de que o país talvez já tenha iniciado um crepúsculo sem volta, o luxo e a sofisticação mascarando a incapacidade de sair de recessão de mais de dez anos.
Os asiáticos, sem exceção, temem todos o despertar da China, sua competitividade comercial aparentemente irrefreável (como se dizia do Japão não faz muito tempo), o fascínio que a faz chupar até a última migalha dos investimentos que antes favoreciam os vizinhos, o risco de que a moderação não prevaleça para sempre sobre os velhos reflexos hegemônicos do antigo Império do Meio.
Assisti em Nova York ao documentário de Michael Moore "Bowling for Columbine", filme político na tradição de "Hearts and Minds", sobre a Guerra do Vietnã, e, sob alguns aspectos, de "Nashville", de Altman. O estranho nome alude aos dois estudantes que, numa manhã como as outras, sem nenhuma razão especial, divertiram-se alguns momentos no boliche antes de massacrar os colegas da Columbine High School, Colorado, como se estivessem arrasando em cheio os peões com uma bolada certeira. Por mais de duas horas, o diretor sai em busca de explicação para a loucura homicida que se apodera de alguns americanos.
Acaso será um produto tipicamente ianque como a "apple pie"? Por que as chacinas sem motivo acontecem mais nos EUA que alhures? É o acesso fácil às armas de fogo que enlouquece as pessoas? Ou o problema provém de uma sociedade dura e impiedosa com os perdedores? Um pouco de tudo, responde o filme, mais o efeito de uma organizada indústria do medo: a TV, o cinema, os jornais, o governo, os pregadores fabricam medo de todas as cores, em produção de massa. Medo dos negros, do crime (associado aos negros), das doenças, do antraz, ontem da conspiração comunista, agora do terrorismo islâmico.
Não se chega a nenhuma conclusão fechada e definitiva, saindo-se do cinema com a desconfiança de que o partido que hoje mais ganha eleições no mundo é o partido do medo. Foi o que deu a vitória a Chirac, o que alimenta a extrema direita xenófoba na Europa. Sem o medo -aliás, justificado- do terrorismo, como entender que um presidente cuja eleição dependeu de contagem renhidamente contestada e decisão judicial até hoje discutida de repente alcançasse quase a unanimidade e ganhasse a disputa para o Congresso, apesar de uma economia problemática?
O medo do terrorismo suicida em larga escala é uma variedade particularmente aguda do medo, e não estou certo de que os brasileiros, que nunca o experimentaram na carne, sejam realmente capazes de avaliar quão profunda é a mudança que ele opera na psicologia dos povos afetados. Ferindo às cegas, sem lógica nem compaixão, ele é incompreensível como "a desgraça que devasta ao meio-dia". Seu efeito imediato é soldar a população toda numa determinação contrária igualmente implacável e sem fissuras. Onde o terrorismo atacou de modo suicida -nos EUA, em Israel, na Rússia- a consequência invariável tem sido o desaparecimento virtual da dissidência dos moderados, do partido da paz, dos conciliadores que se esforçam por entender o ponto de vista do adversário. O resultado é que os líderes -Bush, Sharon, Putin- não perdem o sono por causa da oposição, se é que ela existe.
No mundo inteiro discute-se se o Iraque merece ser considerado a prioridade nš 1 da agenda internacional. Ou melhor, no mundo inteiro menos onde conta: nos EUA. Mesmo esse país de sólida tradição de liberdades individuais e direitos humanos não consegue comover-se com a detenção indefinida de suspeitos, a sorte dos prisioneiros de Guantánamo. Não estou sugerindo que as três situações e os métodos com que vêm sendo enfrentadas sejam iguais, o que obviamente não corresponde à realidade. É indiscutível, no entanto, quaisquer sejam as razões invocadas por tchetchenos, palestinos ou fundamentalistas islâmicos, que a arma do terrorismo suicida não só não lhes avança em nada a causa como é o fator principal para precipitar o mundo em período tenebroso e sem esperança.
Também não se pode dizer que a resposta seja até agora a mais adequada. O orçamento americano de defesa -40% a 45% do total mundial- é igual à soma das despesas militares das 12 ou 15 nações seguintes na lista. Em termos de gastos com pesquisas de defesa, a superioridade do Pentágono é ainda mais esmagadora, chegando possivelmente a 70% a 80% do conjunto do mundo. O mesmo ocorre na relação entre Israel e os palestinos. E, contudo, conforme diz o professor Paul Kennedy, onde colhi esses dados, quanto mais superiores se tornam os EUA a todos os exércitos do universo, mais seus inimigos hão de recorrer a métodos não-convencionais para tentar atingi-los.
As duas conclusões do professor de Yale parecem-me irretocáveis: 1) a sobrevivência de Israel depende, a largo prazo, de um acordo político com os palestinos e árabes; 2) a espantosa "revolução militar americana" é de limitada aplicação para conduzir uma guerra contra inimigo que se move nas trevas.
A criação do Ministério da Segurança Interna, com 170 mil funcionários e orçamento de US$ 47 bilhões, ajudará certamente a eficiência repressiva, mas não altera os dados fundamentais desse círculo vicioso. De um lado, o terrorismo suicida provoca o endurecimento da resposta e o aumento ainda maior do poder atacado. Por sua vez, esse agravamento adicional do desequilíbrio de forças volta a realimentar a exacerbação autodestrutiva.
O poder é indispensável para combater os terroristas. Ao mesmo tempo, é preciso ir além do poder e recorrer à Justiça, temperada pela compaixão e a solidariedade, a fim de chegar às condições que perpetuam o terrorismo. Disso tinham consciência os antepassados dos atuais israelenses, quando afirmavam: "Eu não pus a confiança em minha espada e meu arco não poderá me salvar". Só assim, reiterava o salmista, "não temerás o terror das trevas, pois o Senhor te cobrirá com suas penas e sob suas asas encontrarás teu refúgio".


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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