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OPINIÃO ECONÔMICA
O partido do medo
RUBENS RICUPERO
"Não temerás terror algum durante a noite",
promete o salmo 90, nem a flecha
disparada em plena luz, nem a
pestilência que ronda no escuro,
nem a desgraça que devasta ao
meio-dia. Em começo de século
cada vez mais marcado pelo terror, nenhum outro exorcismo é
tão apropriado.
Escrevo em Tóquio, ao iniciar o
regresso de viagem que fiz ao Japão e à Tailândia. Pouco antes,
havia passado quase uma semana em Nova York. Medo é o que
mais encontrei por toda parte. Os
tailandeses têm medo do medo
dos outros, medo de que os constantes alarmas americanos por
motivos às vezes fúteis paralisem
uma de suas principais atividades, o turismo. No Japão, pela primeira vez ouvi gente de alto nível
no governo expressar o temor de
que o país talvez já tenha iniciado
um crepúsculo sem volta, o luxo e
a sofisticação mascarando a incapacidade de sair de recessão de
mais de dez anos.
Os asiáticos, sem exceção, temem todos o despertar da China,
sua competitividade comercial
aparentemente irrefreável (como
se dizia do Japão não faz muito
tempo), o fascínio que a faz chupar até a última migalha dos investimentos que antes favoreciam
os vizinhos, o risco de que a moderação não prevaleça para sempre sobre os velhos reflexos hegemônicos do antigo Império do
Meio.
Assisti em Nova York ao documentário de Michael Moore "Bowling for Columbine", filme político na tradição de "Hearts and
Minds", sobre a Guerra do Vietnã, e, sob alguns aspectos, de
"Nashville", de Altman. O estranho nome alude aos dois estudantes que, numa manhã como
as outras, sem nenhuma razão especial, divertiram-se alguns momentos no boliche antes de massacrar os colegas da Columbine
High School, Colorado, como se
estivessem arrasando em cheio os
peões com uma bolada certeira.
Por mais de duas horas, o diretor
sai em busca de explicação para a
loucura homicida que se apodera
de alguns americanos.
Acaso será um produto tipicamente ianque como a "apple
pie"? Por que as chacinas sem
motivo acontecem mais nos EUA
que alhures? É o acesso fácil às armas de fogo que enlouquece as
pessoas? Ou o problema provém
de uma sociedade dura e impiedosa com os perdedores? Um pouco de tudo, responde o filme, mais
o efeito de uma organizada indústria do medo: a TV, o cinema,
os jornais, o governo, os pregadores fabricam medo de todas as cores, em produção de massa. Medo
dos negros, do crime (associado
aos negros), das doenças, do antraz, ontem da conspiração comunista, agora do terrorismo islâmico.
Não se chega a nenhuma conclusão fechada e definitiva, saindo-se do cinema com a desconfiança de que o partido que hoje
mais ganha eleições no mundo é o
partido do medo. Foi o que deu a
vitória a Chirac, o que alimenta a
extrema direita xenófoba na Europa. Sem o medo -aliás, justificado- do terrorismo, como entender que um presidente cuja
eleição dependeu de contagem renhidamente contestada e decisão
judicial até hoje discutida de repente alcançasse quase a unanimidade e ganhasse a disputa para
o Congresso, apesar de uma economia problemática?
O medo do terrorismo suicida
em larga escala é uma variedade
particularmente aguda do medo,
e não estou certo de que os brasileiros, que nunca o experimentaram na carne, sejam realmente
capazes de avaliar quão profunda é a mudança que ele opera na
psicologia dos povos afetados. Ferindo às cegas, sem lógica nem
compaixão, ele é incompreensível
como "a desgraça que devasta ao
meio-dia". Seu efeito imediato é
soldar a população toda numa
determinação contrária igualmente implacável e sem fissuras.
Onde o terrorismo atacou de modo suicida -nos EUA, em Israel,
na Rússia- a consequência invariável tem sido o desaparecimento virtual da dissidência dos
moderados, do partido da paz,
dos conciliadores que se esforçam
por entender o ponto de vista do
adversário. O resultado é que os
líderes -Bush, Sharon, Putin-
não perdem o sono por causa da
oposição, se é que ela existe.
No mundo inteiro discute-se se
o Iraque merece ser considerado a
prioridade nš 1 da agenda internacional. Ou melhor, no mundo
inteiro menos onde conta: nos
EUA. Mesmo esse país de sólida
tradição de liberdades individuais e direitos humanos não
consegue comover-se com a detenção indefinida de suspeitos, a
sorte dos prisioneiros de Guantánamo. Não estou sugerindo que
as três situações e os métodos com
que vêm sendo enfrentadas sejam
iguais, o que obviamente não corresponde à realidade. É indiscutível, no entanto, quaisquer sejam
as razões invocadas por tchetchenos, palestinos ou fundamentalistas islâmicos, que a arma do terrorismo suicida não só não lhes
avança em nada a causa como é o
fator principal para precipitar o
mundo em período tenebroso e
sem esperança.
Também não se pode dizer que
a resposta seja até agora a mais
adequada. O orçamento americano de defesa -40% a 45% do
total mundial- é igual à soma
das despesas militares das 12 ou
15 nações seguintes na lista. Em
termos de gastos com pesquisas de
defesa, a superioridade do Pentágono é ainda mais esmagadora,
chegando possivelmente a 70% a
80% do conjunto do mundo. O
mesmo ocorre na relação entre Israel e os palestinos. E, contudo,
conforme diz o professor Paul
Kennedy, onde colhi esses dados,
quanto mais superiores se tornam
os EUA a todos os exércitos do
universo, mais seus inimigos hão
de recorrer a métodos não-convencionais para tentar atingi-los.
As duas conclusões do professor
de Yale parecem-me irretocáveis:
1) a sobrevivência de Israel depende, a largo prazo, de um acordo político com os palestinos e
árabes; 2) a espantosa "revolução
militar americana" é de limitada
aplicação para conduzir uma
guerra contra inimigo que se move nas trevas.
A criação do Ministério da Segurança Interna, com 170 mil
funcionários e orçamento de US$
47 bilhões, ajudará certamente a
eficiência repressiva, mas não altera os dados fundamentais desse
círculo vicioso. De um lado, o terrorismo suicida provoca o endurecimento da resposta e o aumento ainda maior do poder atacado.
Por sua vez, esse agravamento
adicional do desequilíbrio de forças volta a realimentar a exacerbação autodestrutiva.
O poder é indispensável para
combater os terroristas. Ao mesmo tempo, é preciso ir além do
poder e recorrer à Justiça, temperada pela compaixão e a solidariedade, a fim de chegar às condições que perpetuam o terrorismo.
Disso tinham consciência os antepassados dos atuais israelenses,
quando afirmavam: "Eu não pus
a confiança em minha espada e
meu arco não poderá me salvar".
Só assim, reiterava o salmista,
"não temerás o terror das trevas,
pois o Senhor te cobrirá com suas
penas e sob suas asas encontrarás
teu refúgio".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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