São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Bomba inflacionária

LUCIANO COUTINHO

O atual governo lega ao sucessor uma potente bomba inflacionária, que já começou a explodir e que provocará graves efeitos retardados nos próximos meses. Com efeito, a asfixia cambial decorrente da rejeição a investir e a emprestar ao país por parte dos investidores e dos bancos estrangeiros cobra um preço elevado a uma economia cujas contas externas foram imprevidente e temerariamente vulnerabilizadas. A forte depreciação da taxa de câmbio nos últimos meses já provocou um grande impacto sobre os preços no atacado -pela sua média trimestral, o IPA corre, hoje, ao ritmo de 90% ao ano. Esse impacto, que agora começa a chegar ao varejo e aos consumidores, põe em risco a grande conquista da era FHC: a derrubada e a estabilidade da inflação.
Como se pode ver no gráfico, o choque inflacionário sobre os preços ora em curso é bem mais violento que o provocado pela flutuação da taxa de câmbio no início de 1999. Em vários momentos nos últimos anos, esses choques sobre o IPA (atacado) foram contidos e absorvidos, causando, não obstante, um impacto mais atenuado sobre o IPCA. Este, em várias dessas ocasiões, superou a barreira dos 10% ao ano.
Na conjuntura atual, porém, a média móvel do IPCA já corre a 20% ao ano e, por isso, muitos cenaristas respeitados já projetam que, dificilmente, a inflação ao consumidor fechará 2003 abaixo de 15%. Teme-se a formação de um círculo vicioso de aceleração dos preços com risco de retorno da indexação generalizada.
Com o crédito externo ao país praticamente travado, a pressão cambial já trouxe o dólar usado como referência para a formação de preços nas cadeias produtivas para acima de R$ 3,30, e o custo das importações, pressionado pelo próprio real sobredesvalorizado, enfraquece a concorrência externa aos produtores domésticos, viabilizando uma taxa mais elevada de repasse das pressões de custo aos preços.
Algumas tabelas de preços que o varejo está recebendo parecem embutir aumentos não totalmente explicados por custos, mas que refletem posições antecipatórias de inflação em alta -embora se pratiquem, por enquanto, descontos que amortecem sua propagação ao consumidor. Não há ainda, contudo, indícios de que a inflação ao consumidor esteja sendo repassada aos salários, restaurando os mecanismos de indexação em desuso desde a consolidação do Real. Porém a inevitável continuidade das tensões inflacionárias sobre o IPCA nos próximos meses tende a exacerbar as demandas por proteção das rendas que estarão sendo corroídas pela inflação.
Antepõe-se, pois, à equipe econômica que será designada pelo presidente eleito o desafio de evitar a volta da inflação descontrolada, com a desmoralização do regime de metas, sem sacrificar de forma desnecessária o nível de emprego e a situação do setor empresarial. Será uma tarefa difícil.
Apesar da constatação de que se trata principalmente de uma inflação de custos, economistas ortodoxos reclamam por um forte choque de juros para derrubar a economia e reduzir as chances de reindexação. Um choque muito forte de juros acarretaria um grave e indesejável impacto negativo sobre a dívida interna, exigindo um novo choque fiscal. O resultado seria uma recessão muito forte, resultado de um mix de política econômica provavelmente inconsistente, dados os efeitos contraproducentes dos juros mais elevados e do choque fiscal sobre a trajetória das finanças públicas. A inflação, porém, cairia após meses de terríveis sacrifícios.
A alternativa a essa perspectiva é obter o quanto antes uma descompressão da taxa de câmbio. A nova equipe econômica deve infundir confiança nos mercados, e o novo governo deverá atuar no plano político internacional para minorar o bloqueio ao Brasil. O Banco Central, por sua vez, precisará atuar com muita competência na rolagem da dívida indexada ao câmbio, aproveitando o cronograma mais leve de vencimentos nos primeiros meses de 2003. Será ainda imprescindível sustentar o superávit fiscal primário e calibrar a política de juros para evitar que o cálculo dos investidores a respeito do juro real futuro das aplicações financeiras fique negativo ou muito baixo. Ademais, será necessário mostrar tolerância zero com relação à reindexação (aluguéis, planos de saúde, mensalidades escolares, salários etc.). Será crítica a batalha para curvar as expectativas de inflação afastando-se o risco do aceleracionismo. Ao vencê-la, em conjunto com a redução da vulnerabilidade externa, o governo Lula conseguirá, finalmente, conquistar o desenvolvimento sustentável com o qual o Brasil sonha.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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