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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A herança da abertura financeira
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Nos anos 90, o Brasil caiu na
esparrela da abertura financeira "à outrance". Depois da estabilização de 1994, a abundante
liquidez internacional juntou-se
ao câmbio valorizado e aos juros
altos para estimular o endividamento em dólares dos agentes domésticos e desatar a febre de aquisições de empresas brasileiras
-publicas e privadas.
Essa aventura financeira e patrimonial é a maior responsável
pela situação atual do país. A dívida privada em moeda forte e a
transferência massiva de propriedade para os estrangeiros (ou seja, a ampliação do passivo externo líquido) são hoje -diante da
retração do financiamento externo- fonte de instabilidade da taxa de câmbio, pois geram um fluxo importante de pagamentos
(dá-lhe, AES!) e amortizações para o exterior.
Os departamentos econômicos
dos bancos esmeram-se em demonstrar que os fluxos de entrada de capitais em 2003, incluindo
os recursos do FMI, são suficientes
para zerar os compromissos. Fecha, mas na conta do chá, à custa
de um superávit comercial de economia prostrada e, pior ainda,
com as reservas líquidas num nível perigoso, cerca de US$ 20 bilhões, ou cerca de cinco meses de
importação.
Num mundo de incertezas, os
choques cambiais se multiplicam
para os devedores líquidos. Desferidos sobre o câmbio, os choques
se transmitem aos preços indexados ao dólar e à fração da dívida
interna idem. Para conter a inflação, o governo aumenta os juros e
eleva o superávit fiscal primário
para estabilizar a relação dívida/
PIB. O contubérnio entre juros
reais elevados na ponta do crédito
e superávit primário derruba o
PIB, alem de afetar a trajetória da
dívida indexada à taxa Selic. A
relação dívida/PIB parece, então,
escapar ao controle. O risco-país
salta para uma pontuação improvável: os "investidores" e seus
arautos tupiniquins gritam, simulando pânico: exigem, na verdade, o conforto de um superávit
primário ainda mais alentado.
Entre os realmente assustados
com a situação, a palavra de ordem -ao que parece acatada pela maioria- é conseguir um superávit ainda maior em moeda
forte para liberar a taxa de juros
da função de acalmar o câmbio e
a inflação. Vivemos realmente
uma situação difícil: o superávit
atual na conta de comércio vem
sendo obtido, sobretudo, à custa
da queda das importações, ainda
que nos últimos meses se observe
uma animadora elevação das exportações. O superávit só será
saudável caso as exportações e as
importações cresçam, as exportações acima das importações. Só
assim o aumento do saldo comercial é compatível com o crescimento da renda e do emprego domésticos. A economia estaria,
nessa hipótese, crescendo e gerando um superávit com o resto do
mundo -portanto aumentando
o lucro macroeconômico- mediante a expansão das vendas líquidas nos mercados externos.
Fácil de dizer, difícil de fazer.
Primeiro, problemas do "lado da
oferta". Como vem sendo revelado nos últimos dias, muitos setores vão precisar de investimentos
para atender simultaneamente
ao crescimento demandas interna e externa. A capacidade instalada na siderurgia, petroquímica,
alumínio, papel e celulose e em
outros insumos praticamente não
se expandiu nos últimos anos.
Não vai suportar um aumento simultâneo das exportações e da
demanda interna sem novos investimentos. Isso para não falar
da geração e transmissão de energia. Hoje está "sobrando" capacidade de geração por conta do desempenho medíocre da economia. Mas vai faltar, caso o crescimento retome, de forma sustentada, um ritmo superior ao atual.
Esses investimentos demandam
importações, sobretudo de bens
de capital. Esse setor não está em
condições de satisfazer a procura:
não só sofreu um relativo atraso
tecnológico durante os últimos 20
anos mas muitos subsetores desapareceram ou encolheram, diante
da queda vertiginosa dos gastos
de investimento do setor público.
Assim, mesmo nas áreas em que a
especialização brasileira era notória, a retomada do crescimento
vai exigir novos investimentos.
O segundo problema diz respeito à economia mundial. Se a taxa
de crescimento global for muito
baixa, provavelmente a possibilidade de aumentar as exportações
continuará dependendo da desvalorização real do câmbio, da
baixa absorção interna e da contenção das importações.
Está claro agora que a desaceleração da economia norte-americana tem uma característica muito especial. Ela não foi precipitada pela política econômica com o
propósito de abortar repique da
inflação, como em outros episódios semelhantes do pós-guerra.
A origem da crise está nos "excessos" do setor privado. As grandes
corporações cortaram a exuberante escalada de gastos de investimento (e de endividamento) nos
setores de nova tecnologia, agora
afogados em capacidade ociosa.
Os consumidores continuam gastando, estimulados pela baixa de
juros e pelo efeito-riqueza proporcionado pela bolha dos imóveis
residenciais. Mas não há como
manter isso.
Seja como for, é perigoso alimentar fantasias. Nos próximos
anos, é difícil uma repetição das
condições que sustentaram a farra de dólares da segunda metade
dos 90. O Brasil tem um grave
problema de liquidez em moeda
forte. Precisaria de uma ponte para atravessar este período. O crédito externo está se recuperando
a conta-gotas e muitos devedores
-os que conseguem- estão refinanciando sua dívidas com empréstimos de curto prazo. A volta
do financiamento externo em volume suficiente está fora de nosso
controle. O Brasil não pode esperar mais quatro anos para reduzir os juros.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp. Foi
chefe da Secretaria Especial de Assuntos
Econômicos do Ministério da Fazenda
(governo Sarney) e secretário de Ciência
e Tecnologia do Estado de São Paulo
(governo Quércia).
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