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LUÍS NASSIF
O "laranja" de barba preta
No domingo passado, contei
alguns episódios do épico que
foi a greve dos jornalistas de 1979.
Depois do episódio da praça do Pacaembu, com a moral alquebrada,
às 2h do dia seguinte cheguei ao piquete do "Estado de S.Paulo".
Nem bem tinha chegado, apareceu a Veraneio do Dops e dois colegas saíram aos berros. "Companheiros, temos ficha na polícia,
quem de vocês pode se apresentar
como responsável pelo nosso carro?" Quem se apresentou? O "laranja" aqui, sem ter a mínima
idéia do crime que o carro tinha
cometido.
O investigador do Dops era o
agente Lalau, que eu passara azucrinando duas noites antes, no piquete da Folha. Seus olhos brilharam quando me viu. Fui detido e
levado para a delegacia no banco
de trás, ao lado do motorista de
um carro da Folha. O Lalau, no rádio do carro, dizia: "Atenção, chegando com o "laranja" na delegacia de Santo Amaro".
Prestei depoimento rápido e fui
informado que seria levado para o
Dops. Eram oito da matina. Pedi
para avisar minha mulher. Um investigador me acompanhou. Liguei e, em oito anos de namoro,
quatro de casamento, pela primeira vez ela me cobriu de palavrões e
desligou o telefone. Ao lado, o investigador corpulento foi solidário:
"Olha aqui, rapaz, te vi no piquete
da Folha e você era um dos poucos
educados. Vou quebrar o seu galho". Pegou o telefone e comunicou: "Minha senhora, aqui é uma
autoridade policial. Faça o favor
de ouvir o seu marido". Agradeci a
sua ajuda e tentei demovê-la da
idéia de ir ao Dops. Em vão.
Ela foi, bateu na porta, o carcereiro abriu. Ela se apresentou como minha mulher. O carcereiro:
"Tem algum político ou padre aí?
Não? Então pode entrar". Os "políticos" e "padres" eram o senador
Franco Montoro, dom Paulo Evaristo Arns, Eduardo Suplicy e outros reforços convocados pelo sindicato. E o porteiro era mais poderoso.
Primeiro, me levaram para tomar café com o motorista da Folha
e só aí soube da história. Solidário
com a greve, ele havia combinado
com dois jornalistas simular um
assalto ao caminhão dele. No meio
da transferência dos jornais para o
carro apareceu um vigia noturno e
deu o alarme. Ele não teve jeito senão dar a descrição do carro para
a polícia. Mas mudou a descrição
do jornalista. "Ele tem barba ruiva, mas falei para a polícia que a
barba era preta", disse-me. Agradeci à solidariedade para com nossa causa e apontei para a minha
cara. Ele entendeu e pediu desculpas: minha barba era preta.
Às 10h, começou o interrogatório. Quanto tempo de profissão?
Oito anos. "Como foi seu dia ontem?" "Às 11h fui até o sindicato."
"Quem era do comando da greve?"
"Não conheço ninguém." E o delegado para o escrivão: "Escreve aí:
Apesar de oito anos na profissão,
não conhece ninguém do comando
de greve". Às 17h fui para o Bar do
Alemão. Com quem? Uma amiga
me levou. Às 22h fui para o Quincas Borba. Com quem? Outra amiga me levou.
Aí os delegados começaram a
apertar o interrogatório. Um berrava: "É crime comum, dez anos de
cana". O outro rebatia: "É terrorismo, 14 anos". E eu, com cara de saco cheio, com sono, ressaca. De repente, irrompe em pânico na sala o
advogado do sindicato, o Luiz
Eduardo Greenhalgh. "Pelo amor
de Deus, crime comum, não!" Nem
terminou a frase quando minha
mulher saiu da sala ao lado, com
taquicardia, amparada pelo delegado Romeu Tuma. Esperei sair e
esbravejei com os dois delegados:
"Qual é a de vocês? Tentar me assustar, tudo bem, mas minha mulher aí do lado ouvindo tudo!".
Aí um deles me disse algo que
guardei até hoje: "Olha aqui, rapaz, você está de um lado da mesa,
nós do outro. Mas quero te encontrar em um bar qualquer e poder
te pagar um café. Então, um conselho: aproveita que sua mulher
saiu e tire do depoimento essas
histórias de que ganhou carona de
amigas, que ainda vai prejudicar
seu casamento".
Descobri naquela hora que, acima do bem e do mal, das ideologias e das corporações, de amor de
mãe e de avó, nada é mais forte
neste mundo que a solidariedade
masculina.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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