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OPINIÃO ECONÔMICA
O momento da verdade
RUBENS RICUPERO
A proxima-se , inexorável, o
momento em que o pesadelo
começa a virar realidade. Muita
gente no Brasil achava, ou secretamente esperava, que, devido à
exacerbação das pressões protecionistas, o governo americano jamais conseguiria do Congresso a
autorização para negociar acordos comerciais e aprová-los sem
emendas, antes chamada de "fast-track" e hoje rebatizada de Trade
Promotion Authority (ou TPA).
Sem essa autorização, a Alca morreria antes de nascer e o fantasma
se dissolveria no ar. Com a passagem no Senado de versão da TPA
ainda mais dura que a aprovada
pela Câmara, o processo legislativo entra, contudo, na reta final.
Em questão de semanas ou meses,
o pior cenário possível nos desabará sobre a cabeça: ter de negociar
com governo dotado de autorização tão restritiva ou condicionada
a ponto de tornar muito provável
e quase certo que a Alca seja "indesejável", conforme afirmou o
presidente Fernando Henrique
Cardoso no discurso de Québec em
abril de 2001.
Pouco mais de um ano após o
discurso, seria útil refrescar a memória dos leitores sobre quais
eram as condições que o presidente considerava necessárias para
que a Alca fosse "bem-vinda". As
principais eram que ela corrigisse
a desigualdade no tratamento da
agricultura, herdada da Rodada
Uruguai; conduzisse a regras compartilhadas em antidumping e reduzisse as barreiras não-tarifárias. O resultado líquido de tudo
isso era criar "acesso aos mercados
mais dinâmicos" (leia-se, "dos Estados Unidos").
Ora, o que foi que aconteceu desde então nesse mercado dinâmico
por excelência, que é, simultaneamente, o grande propugnador da
Alca?
Primeiro, foram as salvaguardas
contra o aço, um dos mais competitivos produtos brasileiros, criando novos obstáculos e aumentando as barreiras não-tarifárias já
existentes.
Em seguida, a aprovação de lei
agrícola que expande em 75% os
subsídios em dez anos, muito
além, portanto, da duração das
negociações na Alca e na OMC,
em vez de corrigir, agrava as assimetrias da Rodada Uruguai, constituindo um retrocesso em relação
à lei americana de 1996.
Finalmente, a TPA, na versão do
Senado, contém a emenda Dayton-Craig, que efetivamente exclui
da autorização qualquer negociação sobre medidas de defesa comercial, isto é, as regras antidumping, direitos compensatórios e
salvaguardas. Mesmo que venha a
ser abrandada no processo de
compatibilização com a versão da
Câmara, sua adoção pela grande
maioria dos senadores (60) contra
cerca de 30 e o apoio manifestado
por muitos deputados sinalizam
claramente que o Executivo não
terá nenhuma margem de manobra nessa matéria. Como se isso
não bastasse, as duas versões impõem um mecanismo complicado
de consultas a várias comissões do
Congresso no caso de negociações
sobre mais de 300 produtos "sensíveis", o que na prática inviabiliza
concessões em todos os produtos
de prioritário interesse brasileiro.
Mais uma vez observo que não
estou falando de ameaças hipotéticas e futuras, mas sim de fatos
contundentes e consumados, quase todos inapeláveis, com exceção
da TPA, sobre a qual, porém, pouca dúvida resta de que será adotada e sancionada pelo presidente.
Para que não me acusem de "precipitado" ou "exagerado", assinalo também que, fora os principais
beneficiários, toda a comunidade
de comércio exterior nos EUA, assim como os economistas, as universidades e jornais insuspeitos como o "The Wall Street Journal",
condenou irrestritamente tais fatos. Idêntica foi a condenação dos
países industrializados aliados de
Washington, dos dirigentes do
FMI, do Banco Mundial, da OMC
e da voz unânime da imprensa internacional, da qual um dos mais
prestigiosos órgãos, o "Financial
Times", comentava há dias que as
medidas americanas eram "perversas" para a América Latina. É
esse um capital moral e um potencial apoio efetivo nos EUA e no
mundo que o Brasil deve procurar
mobilizar a fim de tentar equilibrar um pouco o jogo assimétrico
das negociações no continente
americano.
Infelizmente, será dentro de tal
quadro adverso e escabroso que
teremos de definir as etapas táticas da postura brasileira no processo negociador e nossa estratégia
final. Não se trata de tarefa preponderantemente técnica; ao contrário, terão de ser políticos os fatores determinantes das decisões,
como ocorre no Congresso e no
Executivo americanos.
O que me esforcei em mostrar na
discussão sobre tarifas é que o
quadro negativo criado pelas recentes decisões americanas não
pode ser abstraído ou ignorado
pelos que traçam a linha da conduta brasileira nas negociações.
Reconheço o patriotismo, a competência e a integridade de nossas
autoridades, a começar pelo presidente, o ministro Lafer e os demais
integrantes do Gecex e da Camex.
Ao mesmo tempo, não posso deixar de notar que o espírito de flexibilidade e boa vontade que caracteriza algumas evoluções recentes
de nossa parte contrasta vivamente com a dureza e a contundência
do outro lado. Será essa a conduta
tática mais eficaz para modificar o
que se afigura como panorama
crescentemente desfavorável?
Quando vivia em Washington,
ouvi certa vez de um amigo o relato de conversa que tivera com profissional americano respeitado,
por muito anos contratado para
assessorar negociações financeiras
do Brasil. Instado por esse amigo a
revelar o que mais o impressionava no padrão negociador brasileiro, confessou relutantemente o interlocutor que era a contradição
entre o discurso de abertura e a
postura final. O Brasil, dizia ele,
costuma abrir o jogo com posições
surpreendentemente ambiciosas,
talvez até irrealistas. No entanto,
ao primeiro e previsível sinal do
adversário no sentido de rejeitar
essas propostas, em lugar de evoluir de modo gradual, de vender
caro cada polegada de terreno,
nossos negociadores pareciam entrar em pânico e começavam a capitular de forma precipitada e desnecessária, acabando às vezes em
debandada.
Creio e confio que essa descrição
desprimorosa, se alguma vez foi
verdade, só se refere a passado remoto e que ela não se aplica, nem
virá a aplicar-se, a nenhum processo atual. Como estou mais interessado no futuro do que no passado das negociações em geral, as da
Alca e outras, achei que não seria
mal-avisado meditar um pouco
sobre essa fábula.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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