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LUÍS NASSIF
O ritual de Finados
Um conjunto de circunstâncias me traz de volta a
Poços de Caldas justo no Finados. Meus mortos queridos estão
espalhados. Em Poços estão as
tias Rosita, Marta, o tio Léo,
meu avô paterno Luiz e tia Tata,
que não conheci. Perto daqui,
em São Sebastião da Grama, estão minha avó Martha, minha
tia- avó Mariana, algumas tias-avós e meu avô Issa, figura referencial em minha vida. Em São
Paulo, meus pais.
É estranho esse ritual da morte. Minha mãe tinha hipercolesterol, sua contagem chegava a
mais de 800. Em 1977 foi se consultar em um convênio, conheceu o Zé Renato, da equipe do
Sérgio Oliveira, que a levou dali
para a UTI e para uma operação de safena. Em 1982, outra cirurgia, e as mãos mágicas do
Sérgio lhe deram mais sete anos
de sobrevida.
Depois disso, praticamente a
cada mês dona Tereza tinha
uma crise cardíaca. Mudei-me
para seu prédio, na Abílio Soares, para poder estar perto dela e
de meu pai, derrubado por um
derrame.
O telefone tocava, muitas vezes de madrugada, eu me trocava, pegava o carro e a levava ao
Incor. Chegávamos, ela ia para
a maca, me chamava, me fazia
uma declaração de mãe e nos
despedíamos sem saber se nos
veríamos mais. No dia seguinte,
ela se recuperava da crise e voltava para casa. Depois disso, até
a crise cardíaca seguinte ficávamos quase sem conversar, embora nos víssemos diariamente.
De um lado, as rotinas me tornaram um obcecado com telefone. Tocasse, a que horas fosse,
me levantava correndo para
atender. Quando viajava, ligava
para saber como estava. Quando chegava de viagem, também.
Eram conversas curtas, quase
secas, desde um dia qualquer da
minha mocidade em que seu excesso de interferências em minha vida me fez construir algumas barreiras defensivas. De outro lado, a rotina das idas ao Incor criava a sensação de que ela
sempre voltaria, que a última
crise sempre seria adiada.
A última crise aconteceu um
ano depois da morte de meu pai,
um enfarte com embolia pulmonar. Alguns meses antes, dona
Tereza havia procurado médicos para saber da possibilidade
de uma terceira cirurgia. Disseram-lhe que não era mais possível, o colesterol já tinha se espalhado por todo o organismo. Subiu até meu apartamento, sentou-se na minha cama e me contou. Ouvi quase com indiferença, como se fosse a repetição do
ritual de entrar e sair da crise.
Não sei se autodefesa, não sei se
o fato de ter me acostumado
com a rotina das crises, não sei
se a dificuldade extrema de aceitar a morte, não me deixavam
assimilar um desfecho mais que
previsível.
Na noite em que ela se foi saí
da televisão e passei no hospital.
Ela estava dormindo. Acariciei
seu rosto, ela abriu os olhos e me
olhou com um olhar terno e surpreendentemente calmo.
Fui para casa dormir. Pouco
depois da meia-noite ela se levantou, passeou pelo corredor
do hospital. Era a visita da saúde. Morreu às 3h. Naquela noite
o telefone tocou, tocou e, pela
primeira vez, não acordei. A empregada precisou bater na porta
do quarto. Foi a mais brutal sensação de perda que já tive, como
se tivesse amputado um braço e
o continuasse sentindo. Nos meses seguintes, voltava das viagens e me via buscando o telefone para ligar para ela. Nos domingos, acordava pensando no
almoço de família, e ela não
mais estava entre nós.
Agora, em São João, me encontro com o Nelsinho Nicolau e
recordamos o bilhete que ele me
mandou me confortando, narrando sua experiência com a
morte de seu pai.
No início, é aquele vazio dilacerante. Depois, à medida que o
tempo vai passando, as dores começam a cicatrizar. Mais à frente, vão se reconstituindo, pedaço
por pedaço, sentimentos, lembranças, histórias. E vai emergindo não mais uma lembrança,
mas uma presença muito mais
intensa e permanente do que as
nesgas de convivência que o ritmo frenético das metrópoles nos
impõe.
Agora, sob o céu estrelado e o
clima ameno de Poços, me recordo dos meus mortos com sensação de calma, de alma pacificada. Aí olho para minhas menininhas e me maravilho com o
milagre permanente das gerações.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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