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OPINIÃO ECONÔMICA
Erro de diagnóstico
RUBENS RICUPERO
Quando o médico se engana
no diagnóstico, a cura muitas vezes mata o doente. Receio
que isso poderia ter ocorrido com
o comércio exterior brasileiro, se
algumas propostas feitas na campanha eleitoral tivessem sido postas em execução. Durante longo
tempo, fomos como aqueles doentes que preferem ignorar o mal de
que sofrem. O "estrangulamento
externo" -isto é, a incapacidade
de gerar, por meio das exportações, os dólares para pagar as importações- era tratado com paliativos: as restrições às importações. Mais recentemente, recorremos a remédio cujos efeitos tóxicos colaterais ameaçam liquidar
o paciente: o endividamento interno e externo, de que passamos
a tomar doses maciças. Agora finalmente parece que despertamos para o reconhecimento de
que é esse o principal obstáculo à
retomada do crescimento em ritmo satisfatório. No entanto, como
sempre sucede na América Latina, em vez de buscar soluções práticas e concretas, alguns se inclinam pela chamada "solução institucional": criar um novo ministério para cuidar do assunto.
A crença de que um ministério
resolve nasce de diagnóstico errado: o de que o problema provém
das barreiras protecionistas que
não estaríamos sendo capazes de
remover pelas negociações, supostamente devido à falta de um ministério especializado. O equívoco
desse juízo salta aos olhos. Basta
lembrar que até data recentíssima, inícios de 1999, ministério nenhum poderia ter superado o desastre permanente criado pelo
câmbio valorizado, política consciente e obstinadamente sustentada pelo Banco Central e pelo
Ministério da Fazenda.
A verdade é que todo país apresenta, em doses variáveis, dois tipos de problemas no comércio exterior: o das barreiras externas a
seus produtos e o das limitações
internas de sua própria oferta. A
Argentina é um bom exemplo do
primeiro caso. Dispõe de oferta
abundante, com boa qualidade e
preços baixos, de produtos agropecuários em que é extraordinariamente competitiva. Enfrenta,
contudo, barreiras intransponíveis no protecionismo das nações
avançadas. Tais obstáculos só poderão ser (talvez) removidos por
negociações perseverantes, em
prazos de médios a longos. Mesmo assim, os resultados finais são
aleatórios, em razão da disparidade de poder. De nada adiantaria à Argentina ter um superministério do comércio ou uma
equipe negociadora composta por
Talleyrand, Metternich, Bismarck, o Barão do Rio Branco,
convocados do outro mundo. Que
poder teriam eles para prevalecer
contra os interesses da Europa inteira, dos EUA, do Japão, da Coréia do Sul?
O nosso caso é mais do segundo
tipo. Não é que nos faltem barreiras como as que injustamente enfrentamos nos Estados Unidos,
uma vez mais postas em evidência por excelente estudo da Embaixada do Brasil em Washington. Temos de continuar a nos bater para a remoção desses obstáculos, bem como os da Europa e
terceiros. Ao mesmo tempo, é preciso ter presente que esses produtos estão longe de constituir os
mais dinâmicos do comércio
mundial, aqueles cuja demanda
cresce mais rápido que a média e
cujos preços melhor remuneram o
exportador. Os itens dessa última
categoria são os que apresentam
maior tecnologia e valor adicional embutidos, os produtos eletrônicos, de telecomunicações, químicos, usualmente exportados
pelos asiáticos. Os artigos dinâmicos reúnem o melhor de dois
mundos: enfrentam tarifa zero ou
insignificante, além de se beneficiarem de preços e demanda mais
altos.
Infelizmente, é pequena nossa
presença nesse setor, pois a oferta
brasileira continua concentrada
em bens intermediários, fortemente dependentes de recursos
naturais. Existem promissoras
exceções, como os aviões da Embraer, os telefones móveis, os veículos, os produtos elaborados da
Sadia, mas ainda em proporção
insuficiente. Se o Brasil quiser
multiplicar por dois ou três suas
exportações, em prazo razoável,
não vai certamente consegui-lo
apenas pela via incerta da remoção de barreiras a produtos congelados pelos "lobbies" protecionistas e de baixo dinamismo. Terá de complementar esse esforço
negociador mediante a ampliação e a diversificação da oferta
exportável, o que depende de investimentos, externos e internos, e
de tecnologia.
Por sua vez, só haverá clima
propício a investimentos voltados
à exportação se o câmbio for favorável e os juros se tornarem "civilizados" (assuntos do Banco
Central e da Fazenda), se o sistema tributário não castigar as importações (Congresso, Receita Federal, Fazenda), se o custo da logística de energia, transportes,
portos, comunicações, diminuir
significativamente. Como se vê, é
simplismo querer reduzir a complexidade da equação a uma só
variável: a negociação internacional.
Para lidar com tal complexidade, o melhor é dispor de um órgão
de coordenação (não de execução), pequeno mas efetivo, pequeno porque não se destina a substituir os demais em suas respectivas
esferas, mas capaz de dirimir divergências por estar próximo da
autoridade do presidente. E não
esquecer que o principal depende
não do mundo exterior, dos americanos ou europeus, mas de nós
mesmos, de nossa capacidade de
encontrar em nossas próprias forças as soluções pragmáticas, operacionais, ao problema do estrangulamento, conforme fazem os
chineses, os hindus, os asiáticos
em geral.
Meu amigo e colega Luiz Felipe
Lampreia rebateu com autoridade e experiência as críticas desequilibradas e injustas feitas ao
Itamaraty na campanha ("Um
patrimônio do Estado brasileiro",
"O Globo", 29/10/02). Dizia o general de Gaulle que o Exército é
um instrumento do Estado, mas,
para ser bem usado, é preciso que
haja um Estado. Da mesma forma, o Itamaraty, por melhor que
seja, não pode suprir a falta de Estado, a falta de projeto de país, a
carência de política de ampliação
da oferta exportável, a inexistência de setores privados exportadores que imprimam à posição negociadora brasileira caráter mais
diversificado em relação à excessiva concentração na agricultura.
É uma insanidade pensar que
tudo isso possa ser resolvido enfraquecendo a única área de excelência do Brasil, consistentemente reconhecida no exterior
desde Rio Branco. Felizmente, o
pior parece ter passado. Se algumas das propostas eleitorais tivessem prosperado, seríamos forçados a parafrasear o comentário
sobre a execução por Napoleão do
duque d'Enghien e constatar que
teria sido, mais que um crime, um
erro. Talvez fatal para o pouco
que sobrou do Estado brasileiro
após essa implacável obra de desmonte empreendida desde 1990.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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