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LUÍS NASSIF
As orações do Brasil
O tempo acaba sufocando
muitas lembranças da infância. Uma delas foi a religiosidade
católico-mineira, tão presente naquelas fraldas da Mantiqueira por
onde se chegava subindo a montanha e, depois, entrando na boca do
vulcão, da minha Poços de Caldas.
Hoje em dia tornei-me cidadão
contemporâneo, amarrado ao ritmo da vida moderna, à neurose
das grandes cidades, escravo do
tempo e dos prazos. Mas meus
mortos e minhas lembranças sempre renascem uma vez por ano,
quando o país se recolhe e celebra
Todos os Santos e Finados.
Cresci em ambiente católico, fiz a
primeira comunhão, e fui escolhido, com uma coleguinha francesa,
para compor o casal que receberia
a hóstia consagrada na frente do
altar, em nome do grupo da irmã
Terezinha, a irmãzinha leiga que
nos preparou para o mais belo dos
sacramentos. Admito que nos ensaios engasguei com a hóstia e a tirei do céu da boca com minhas
mãos ímpias, ainda bem que não-consagrada, caso contrário jorraria o sangue de Jesus crucificado.
Depois, fui cruzado mariano,
apóstolo, fiz as treze sextas-feiras e
quase completei os cinco sábados.
Usava escapulário e ágnus-dei,
ambos garantindo a salvação eterna e o aviso da morte, um dia antes, comunicado diretamente por
Nossa Senhora.
O escapulário é um saquinho de
pano, com cordão para pendurar
no pescoço. Dentro, tem bordados
o coração de Jesus e o de Maria. Já
o ágnus-dei é uma medalhinha
benta, que se prega na roupa com
alfinete. Aberta, mostra lado a lado os corações de Jesus e de Maria.
Se esses símbolos impressionavam, assim como o brasão dos cruzados, as músicas não ficavam
atrás. "Jesus Cristo está realmente/
de dia, de noite, presente no altar/
esperando que cheguem as almas/
ansiosas, silentes, para o visitar",
era nosso hit.
Havia as músicas de procissão,
algumas muito chatas, como o
"queremos Deus/homens ingratos/ao pai supremo, ao redentor" e
muitas em latim. E havia as orações das missas, algumas épicas, de
arrepiar, como o trecho que fala
em "santo, santo, santo/é o senhor
Deus dos exércitos/hosana nas alturas/bem vindo os que vêm em
nome do senhor".
As orações para crianças eram
particularmente encantadoras.
Nem sei se foram preservadas para
as novas gerações católicas. Para
dormir, podia-se escolher entre
duas clássicas, ambas dedicadas ao
anjo da guarda. A minha preferida
era: "Santo anjo do senhor/meu zeloso guardador/se a ti me confiou a
piedade divina/que me guarde,
que me rege/me governe e me ilumine". Havia outra, muito popular, mas que considerava meio bobinha para os meus dez anos:
"Com Deus me deito/com Deus
me levanto/na graça de Deus/do
divino Espírito Santo/para anjo
da guarda que me guarde/São José rogai por mim/agora e na hora
de minha morte, amém".
Havia uma oração especial na
família, o "Salmo 90", oração de
proteção. Carlos Lacerda morreu
com um salmo 90 na carteira, provavelmente o mesmo com que foi
presenteado por minha avó Martha, escrito com sua letrinha graciosa. Logo após o atentado da
rua Toneleros, Lacerda ligou para
o vô Issa garantindo que o salmo
90 havia salvo a sua vida. Quando
comecei na profissão, a primeira
providência da vó Martha foi escrever o salmo 90, que eu trazia na
carteira comigo.
E havia as orações clássicas:
"Ave Maria", que não me comovia muito, "Pai Nosso", que a gente falava antes "padre nosso", o
"Credo", que era mais um exercício de memória do que de emoção.
E o "Salve Rainha". E aí, meu
amigo, era como se a gente fosse
transportado para os umbrais do
tempo, para o início das religiões,
para os mistérios divinos. "Salve
Rainha, mãe de misericórdia/a vida, doçura, esperança nossa, salve/a vós bradamos os degradados
filhos de Eva/a vós suspiramos, gemendo e chorando, nesse vale de
lágrimas."
E-mail - LNassif@uol.com.br
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