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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Intervir em mercados é heresia necessária e aceitável

GILSON SCHWARTZ
ARTICULISTA DA FOLHA

Nem tudo é respeito obsessivo pela ortodoxia econômica. Nesse momento em que algumas das principais economias em desenvolvimento se rendem a programas de ajuste ditados por organizações como o FMI e o Banco Mundial, pelo menos um templo do conservadorismo econômico dá espaço para heresias.
É o semanário inglês "The Economist". Em sua mais recente resenha dos desenvolvimentos no mercado internacional de capitais, ele conclui que, diante dos fracassos em todos os quadrantes do hiperliberalismo financeiro, um "bom liberal" precisa "parar para pensar".
O relatório do editor Clive Crook abandona um dos mais arraigados hábitos de pensamento da teoria econômica convencional: considerar que o equilíbrio idealizado numa troca comercial acontece e se aplica a todo e qualquer tipo de troca (compra e venda): de dinheiro, de tecnologia e de trabalho.
Os modelos clássicos de economistas garantiam que a liberação dos mercados (menos intervenção do Estado, eliminação de barreiras ao trânsito de capitais, libertação da mão-de-obra para ser comprada e vendida no mercado) ampliariam as oportunidades para todos. E o aumento de oportunidades, se não levasse a melhoria de renda para todos, ao menos não prejudicaria ninguém. Quanto mais trocas, mais oportunidades de geração de renda para todos. Um país que se abre ao comércio internacional teria mais mercados para sua produção e, ao mesmo tempo, acesso a mais mercados para seus consumidores.
Cada barreira ao fluxo de bens e pessoas que cai abre oportunidades antes inalcançáveis. Não por acaso, o símbolo da chegada ao poder do neoliberalismo foi a queda de uma barreira, o Muro de Berlim em 1989.
A "Economist" não chega ao ponto de duvidar desse idealismo liberal que nasceu no império britânico a partir do século 18. Mas Crook diz que a mesma lógica do mercado livre aplicada às finanças produz catástrofes.
A heresia é introduzida por uma única causa: a existência do tempo. É a ignorância sobre o futuro (por exemplo, a impossibilidade de confiar na taxa de câmbio) que dificulta o reequilíbrio de um mercado financeiro instável por definição. Pior: certos desequilíbrios têm seus efeitos multiplicados exponencialmente, produzindo fenômenos como a "calamidade financeira recorrente", a "moratória de dívida soberana", a "crise cambial", a "quebradeira bancária", o "crash na Bolsa", as "décadas perdidas" e também as armadilhas financeiras que hoje comprometem as principais economias do planeta: EUA, União Européia e Japão.
Aplicar a lógica mercantil pura aos circuitos financeiros é ignorar a diferença entre produtos (bananas ou sapatos) e ativos (títulos cujo valor depende de fluxos de pagamentos distribuídos ao longo do tempo, como uma dívida de empresa).
Existe um nível de equilíbrio para a taxa de câmbio? O câmbio resulta do jogo entre oferta e procura por dólares. Se houver mecanismos capazes de conduzir oferta e procura a um equilíbrio, o câmbio se estabiliza. Parte da oferta e procura por dólares resulta do comércio internacional. Mas o dólar é também um ativo. Oferta e procura por ele estão sujeitas à instabilidade dos mercados de ativos (Bolsas, dívidas pública e privada).
A "Economist" está dizendo que não se deve confiar nesses mercados de ativos para chegar ao equilíbrio da taxa de câmbio.
Conclusão: quem nos governos não entende a diferença entre bananas e dólares fatalmente conduz economias ao desastre.



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