UOL


São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Prazeres da história

RUBENS RICUPERO

"O prazer, o prazer da história, em suma, que é tão grande!" Para o falso Henrique 4º de Pirandello, refugiado na história de 1070 por não querer enfrentar sua vida em 1920, o prazer era eliminar a angústia do desconhecido, o medo do futuro incerto. Mesmo a humilhação final de Canossa, o imperador ajoelhado na neve para implorar o perdão do papa Gregório 7º, tornara-se suportável ao adquirir a imutabilidade dos fatos passados, a certeza de um destino fixo para sempre.
Para nós, o fascínio provém da causa oposta, do inesperado, das surpresas da história das últimas semanas, que se diverte em ridicularizar a ingenuidade dos anunciadores da sua prematura morte com o fim do comunismo. Das muitas tolices que se afirmaram na ocasião, a mais simplória era imaginar que a combinação de democracia com economia de mercado bastaria para fazer aceitar em definitivo o predomínio unipolar dos Estados Unidos. Nesse sentido, é fascinante ver como a divisão ocasionada pela guerra do Iraque reabriu o conflito em torno da redefinição estratégica do mundo.
O ponto de partida é o desabamento da estrutura criada em 1945. O saudoso embaixador Araújo Castro costumava ensinar que, naquele momento, em São Francisco, começara o processo de "congelamento do poder mundial", a fim de perpetuar a configuração emergente do término da Segunda Guerra. A expressão institucional desse arranjo foi o grupo dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança com direito a veto, reservado às potências vitoriosas: EUA, URSS, Reino Unido, França e China. A etapa seguinte tinha sido, em 1968, a assinatura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, que estendia o congelamento ao poder tecnológico-militar, tentando fechar as portas do clube nuclear.
Apesar da aparência, o sistema nunca deixou de ser bipolar em essência, com dois blocos hostis liderados pelos EUA e pela URSS. As tentativas de De Gaulle (e da China no bloco soviético) de evoluir para o multipolarismo não podiam alterar a substância: cada bloco dependia, para sua segurança, da proteção de uma superpotência situada totalmente ou em grande parte além das fronteiras da região.
Essa "estabilidade bi-hegemônica" só será finalmente destruída pela desagregação da URSS e a dissolução do seu bloco, fim não da História com maiúscula, mas de uma história entre outras, a da ordem internacional datada de 1945. Desde então, como diria Gramsci, o velho não acaba de morrer e o novo não consegue nascer, aparecendo toda sorte de sintomas mórbidos no intervalo. O ataque contra o Iraque lancetou o abcesso. Ele provou que os americanos estão prontos a passar à ação para preservar a superioridade e a iniciativa estratégicas, dispostos a pagar o preço para continuar a ser a Roma da "monarquia universal", o pólo exclusivo do universo unipolar.
Diante de desafio impossível de ignorar, pois é como a bofetada dos duelos antigos, a reação dos quatro "grandes" é diversa e reveladora. No extremo minimalista, a China, que, no início do governo Bush, era identificada como "inimigo estratégico", fala pouco e baixo. Espera sua hora e não quer atrair a atenção para sua dependência do mercado americano. Os russos afirmam-se gradualmente e dificultam o levantamento das sanções ao Iraque no conselho. Putin declara que a Rússia não aceitará um mundo unipolar no qual um país apenas toma as decisões.
O significativo, contudo, é como o conflito rachou ao meio a Europa, aprofundando falha geológica herdada do passado, que ameaça empurrar para um lado a Inglaterra e para o outro a França. Os ingleses lideram as "ilhas", no sentido geopolítico, a franja exterior, a periferia mediterrânea, escandinava, leste-européia, atlântica. Elas rodeiam o núcleo territorial duro da velha Europa, a França e a Alemanha, sua extensão, a Bélgica e Luxemburgo, no coração das terras ocidentais, os mesmos atores, em substância, que em 800 se chamavam Neustria e Austrasia, fundindo-se para formar o império de Carlos Magno, base da unificação européia nos anos 1950, que de novo se contrapõe aos atlantistas. Com franqueza chocante, Blair admite, em entrevista, a existência de uma diferença de visão: "Alguns querem um chamado mundo multipolar, com diversos centros de poder, os quais, creio, logo se tornarão centros rivais de poder; outros acreditam, e essa é minha posição, que precisamos de um poder unipolar que englobe uma parceria estratégica entre a Europa e os EUA", em termos práticos, um condomínio do mundo ("Financial Times", 28/4/03).
A entrevista saiu na véspera do encontro em Bruxelas (para o qual a Inglaterra não foi convidada) em que os europeístas e multipolares decidiram criar um quartel-general central da defesa européia, "que poderia, em última instância, rivalizar com a Otan e levar a um choque com os EUA" ("FT", 30/4/03). Embora os protagonistas se esforcem para não exacerbar as tensões com os EUA e a Inglaterra, não se pode disfarçar que é o primeiro passo importante para dar consequência estratégica ao racha provocado pelo Iraque. É cedo para dizer se, desta vez, haverá condições para realizar o projeto gaullista de um poder militar independente para uma Europa unificada. Desapareceu um inibidor, a ameaça soviética, mas haverá as condições objetivas de dinamismo econômico para financiar esforço tecnológico e armamentista comparável ao americano? Seja como for, é cada vez mais difícil justificar a aliança transatlântica. Os interesses estratégicos dos EUA se deslocam para a Ásia, próxima ou distante, onde, conforme se viu no Iraque, os governos e a opinião pública européia não partilham a mesma visão. Os interesses econômicos e comerciais divergem, da mesma forma que as culturas e as atitudes perante a vida, as preferências em matéria de modelos de capitalismo, os valores e as aspirações sociais. É por essas razões que alguns cultores dos prazeres da história não hesitam em anunciar o inelutável ocaso da Otan e a retirada das tropas americanas da Europa. Lembram de um precedente sugestivo de divórcio amigável, no interior do nosso espaço civilizatório. Consequente a idêntico processo de crescente divergência de interesses estratégicos e econômicos, de valores, atitudes e culturas, foi o que levou, após a morte de Constantino, ao afastamento entre romanos e gregos, à divisão do Império Romano entre o do Ocidente, com sede em Roma, e o do Oriente, com Constantinopla -mais tarde Bizâncio- como capital. Como se sabe, Roma e Bizâncio nunca mais se reconciliaram.
Nota: "Se alguém quiser empreender viagem (...) inteligente pela obra de Pirandello, nada melhor (...) do que acompanhar este "Roteiro para uma Leitura", que Aurora Fornoni Bernardini faz preceder à sua tradução de Henrique 4º", palavras de Gianni Ratto, que faço minhas, no prefácio a "Henrique 4º e Pirandello", de Aurora F. Bernardini, Edusp.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


Texto Anterior: Tendências internacionais: Intervir em mercados é heresia necessária e aceitável
Próximo Texto: Lições contemporâneas: Câmbio, inflação e crescimento
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.