São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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ANÁLISE/O VAIVÉM DO DÓLAR

Agora, política do BC e do governo é fortalecer o real

JOSÉ JÚLIO SENNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A partir de março deste ano, o Banco Central passou a revelar certo grau de preocupação com o patamar atingido pela taxa de câmbio. Naquela época, como se recorda, o preço do dólar situava-se em torno de R$ 2,10. Teve início, então, uma série de intervenções no mercado cambial.
Numa primeira etapa, que prevaleceu entre março e junho, as autoridades monetárias promoveram vendas expressivas de moeda estrangeira e de papéis cambiais de prazo curto e aumentaram de maneira modesta a taxa básica de juros da economia.
Naquele momento, estavam sendo postos em prática os famosos princípios da intervenção cambial não-esterilizada, segundo os quais as operações no mercado de divisas devem ser acompanhadas de alterações no rumo da política monetária. Note-se que a elevação de taxa de juros justificava-se plenamente, devido à constatação de que a demanda agregada encontrava-se aquecida e o núcleo da inflação em alta. Na medida em que os juros subiam, a demanda estaria sendo contida, contribuindo para melhorar as perspectivas inflacionárias e reduzir o déficit em transações correntes do balanço de pagamentos.
Como se sabe, a tentativa de conter a depreciação do real não teve sucesso e a hipótese de que estávamos diante de um bolha especulativa ganhou corpo. Em resposta ao crescimento das preocupações nesse sentido, o BC tratou de fazer uso de um arsenal mais poderoso, aumentando o peso de suas intervenções no mercado e promovendo aumento mais significativo da taxa de juro.

Especulação x fundamentos
Logo se percebeu que o processo de depreciação da moeda doméstica tinha mais a ver com a piora dos fundamentos macroeconômicos do que propriamente com movimentos de cunho especulativo. Foi quando se caminhou para a terceira etapa dessa série de intervenções. Desta vez, ficou clara a intenção das autoridades monetárias de evitar qualquer tipo de "cabo-de-guerra" com os participantes do setor privado, dando-se início à fase de "irrigação" do mercado, mediante vendas homeopáticas de dólares, a um ritmo de US$ 50 milhões por dia.
A despeito desses esforços, a depreciação do real continuava. No pior momento, o preço da divisa alcançou R$ 2,835. Chegamos à fase atual, que aparentemente envolve um grau bem maior de determinação, comparativamente ao revelado nas etapas anteriores. Que fatores nos fazem acreditar na veracidade dessa hipótese?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que esta quarta etapa da política de intervenções cambiais envolve expressiva mudança na administração da dívida pública e que, no governo, têm-se discutido as condições capazes de justificar eventual comportamento ativo na administração da dívida.

Crença na queda do dólar
Do ponto de vista teórico, se governantes e demais agentes econômicos têm acesso às mesmas informações e se os participantes de mercado exploram adequadamente diferenciais de retorno entre títulos públicos de natureza distinta (indexadores diferentes, por exemplo), as tentativas de gerir ativamente a dívida governamental mostram-se infrutíferas.
Na prática, porém, nem sempre as condições ideais sob as quais a política seria neutra são satisfeitas, e é isso o que dá sentido a uma política que busque a composição "ótima" do endividamento público. Se o governo acredita, por exemplo, como parece acreditar, que o real está excessivamente depreciado, o aumento da dívida indexada ao dólar, utilizado na tentativa de conter a escalada da taxa cambial, pode concorrer para a obtenção de uma melhor composição da dívida.
Em segundo lugar, e reafirmando o que foi dito acima, passou a ser voz corrente na equipe econômica a hipótese de que o real encontra-se "excessivamente depreciado", situação essa que tende a se corrigir. No entender dos dirigentes do Banco Central, o câmbio real não cai mais do que 25% ou 30%. Na prática, as correções acontecem mediante aumento da inflação ou apreciação nominal da moeda, sendo de esperar que este último corresponda ao caso brasileiro atual.

A nova intervenção
A nosso ver, a "unanimidade" a que se chegou seria fruto da intenção de se transmitir para o público a idéia de que a aposta do Banco Central na apreciação da moeda doméstica constitui uma decisão de governo, e não uma atitude isolada das autoridades monetárias. A venda de títulos indexados ao dólar tanto por parte do Banco Central quanto por parte do Tesouro seria uma demonstração do consenso a que teria chegado a equipe econômica.
Em terceiro lugar, não tem sido modesta a mudança na composição da dívida pública. Como resultado da estratégia ora em curso, em cerca de oito meses a parcela do endividamento mobiliário federal indexado à taxa de câmbio subiu de 23% para 31%, ao mesmo tempo em que o percentual de papéis cambiais que vencem em 12 meses (ou seja, a curto prazo) passou de 34% para 40%.
Em quarto lugar, é essencial lembrar que o Banco Central já fez uso de medidas de cunho administrativo, com o propósito básico de tentar forçar o sistema bancário a reduzir suas posições compradas de moeda estrangeira (compulsório e alavancagem). A julgar pelos indícios disponíveis, a disposição de voltar a fazer uso de mecanismos do mesmo tipo está longe de ter desaparecido.

O dólar e a dívida
Tudo isso em conjunto parece realmente caracterizar uma nova política, voltada para influenciar a cotação do dólar e para tirar proveito de tal possibilidade, reduzindo o custo da dívida pública. São essas considerações que nos permitem chamar de "ativa" a estratégia do governo, que, evidentemente, tem seus riscos.
Por certo, qualquer política intervencionista adquire chances maiores de sucesso quando os ventos sopram a favor. Por acaso, no momento, está em curso uma série de eventos que tem contribuído para aliviar as pressões no mercado de câmbio, a saber: a) os sinais claros de que a balança comercial está "virando", tornando-se elevada a probabilidade de obter um resultado bastante positivo em 2002 (possivelmente, mais de US$ 6 bilhões); b) os bons resultados na área fiscal, tendo a meta de superávit primário de 2001 sido atingida já em setembro; c) o bom comportamento do núcleo da inflação, previsto para os próximos meses; d) o reforço das reservas internacionais produzido pela antecipação da receita das "polonetas" (US$ 2,5 bilhões) e e) o fato de que a situação argentina tem afetado cada vez menos as medidas de risco Brasil. Com ventos favoráveis, a curto prazo, a política de intervenções dá relativamente certo. A demanda por "hedge" fica mais contida, na presença de um câmbio menos depreciado. Naturalmente, tudo isso deixa de ser verdade se os ventos mudam (caso, por exemplo, de um acontecimento radical na Argentina).
Por fim, é essencial não esquecer que, em horizontes mais longos de tempo, o comportamento da taxa de câmbio depende mesmo é dos fundamentos. Na medida em que se apresentem efetivamente boas as condições de financiamento do setor externo em 2002, podemos esperar que a tranquilidade atualmente presente no mercado cambial perdure. Caso contrário, as pressões sobre o preço da divisa fatalmente voltarão, de pouco adiantando as intervenções oficiais.


José Júlio Senna, 55, é doutor em economia pela Universidade Johns Hopkins, ex-diretor da Dívida Pública do Banco Central, e sócio-diretor da MCM Consultores Associados. É autor de "Os Parceiros do Rei" (Topbooks, 1995)


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