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OPINIÃO ECONÔMICA
Sem explicação
RUBENS RICUPERO
A o contrário dos suicidas
do poema de Manuel Bandeira, que se matam sem explicação, os recentes sequestradores,
ao menos uns poucos, tentaram
comunicar-nos alguma coisa por
escrito. Ignorando o código religioso dos autores, não estou seguro de que consigamos compreendê-los. Há nos documentos referências religiosas e à purificação
ritual, mas não bastam para esclarecer as causas sociológicas escondidas capazes de produzir esse
tipo de fundamentalismo.
Em Genebra, na localidade onde moro, dois moços de nossa paróquia, de pouco mais de 20 anos,
suicidaram-se nos últimos tempos com o fuzil regulamentar do
Exército suíço, que cada um guardava em casa. Ao que eu saiba,
não deixaram explicação. Eram
jovens sofridos, inadaptados, mas
o primeiro comentário que ouvi,
em ambos os casos, foi que não tinham emprego. Em Genebra,
aliás, o suicídio é a primeira causa de mortalidade entre os jovens.
Voltou-se a falar muito por
aqui da correlação entre desemprego e suicídio, sobretudo depois
que o Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França
(Inad) demonstrou que as duas
curvas se elevaram bruscamente
durante a maior parte dos anos
90. O salto é particularmente sensível entre os operários de 25 a 49
anos, para os quais a taxa de suicídio é seis vezes superior à dos
profissionais liberais e da mesma
faixa de idade. A faixa de 30 a 45
anos é considerada como a "idade do perigo" por excelência, pois,
conforme explica um estudioso,
"contrariamente aos jovens, que
podem conservar alguma esperança, os mais maduros começam
a suspeitar de que talvez jamais
logrem sair do desemprego".
Não que os moços escapem ao
contágio: um em cada dez pensou
seriamente em suicídio, e a taxa
de desemprego entre 16 e 25 anos
é duas vezes mais alta do que para o grupo de adultos de 25 a 54
anos.
Não há nada de novo na correlação entre desemprego e autodestruição. São conhecidos a respeito os estudos de Durkheim e de
Halbwachs, as observações de
Marx, as refutações que provocaram. O que mudou foi a transformação do desemprego, que passou de episódio ocasional ou temporário na vida do indivíduo a fenômeno estrutural, durável e de
massa. Em países como a Inglaterra, existem adultos que viveram a maior parte de suas vidas,
casaram-se e tiveram filhos sem
nunca conseguir um emprego regular.
Mais do que flagelo social ou
disfunção econômica, o desemprego crônico é a expressão definitiva da tragédia individual.
Mesmo nas áreas de enorme incidência do desemprego estrutural,
a colocação profissional continua
a ser o sinônimo da independência. Sem ela, é quase impossível
construir para si uma identidade
social num mundo onde o trabalho define, em última análise, a
inserção das pessoas na sociedade.
Um dos sociólogos que estudam
o fenômeno na França observa
que "a falta de trabalho é vivida
como a amputação de um braço
ou de uma perna, significa a desorientação, a perda de referências,
a sensação de inutilidade, de estar sobrando". Calcula-se que sejam hoje mais de 66 milhões os
moços sem perspectiva de trabalho, justamente na idade em que
as pessoas sentem o natural desejo de estabelecer família, de edificar com esforço a própria vida.
Lembro-me da impressão que
guardei dos países da África do
Norte -Egito, Marrocos, Argélia,
Tunísia-, onde, a qualquer hora, as ruas e praças estão cheias
de homens jovens perambulando
pelas calçadas, encostando-se nas
esquinas, "segurando os muros",
como dizem os argelinos. Se um
homem ou mulher na força da
idade, enérgico, ambicioso, bem-educado, sabe que provavelmente
nunca obterá emprego condigno,
que a sociedade não tem lugar
para ela ou ele -como ocorre cada vez com mais frequência-,
será surpresa que essa pessoa se
volte para propostas políticas extremistas, quando não algo pior?
Sabe-se que a angústia do futuro
sem trabalho teve algo a ver com
o início da rebelião entre os estudantes de ciências sociais de Nanterre em maio de 68. Da mesma
forma, a combinação de educação superior, de todas as expectativas e capacitação que gera, com
a incapacidade de encaminhar
esse potencial para fins sociais
construtivos conduziu a resultados explosivos na emergência do
terrorismo e da guerrilha urbana
na Argentina, no Uruguai, na
Alemanha e na Itália dos anos 70.
Não se deve simplificar, pois houve outros fatores, possivelmente
mais importantes. Pode-se negar,
contudo, que esse elemento talvez
tenha estado presente na gênese
do radicalismo de jovens árabes,
educados na Europa mas sem
reais perspectivas de inserção profissional ou política nos seus países de origem?
Evoquei esses aspectos na abertura do Fórum sobre Globalização e Emprego, convocado pela
Organização Internacional do
Trabalho (OIT), recordando à assistência que, ao final da Segunda
Guerra Mundial, ainda se acreditava na possibilidade de atingir o
pleno emprego. A Conferência de
Havana de 1947, ligada à origem
do Gatt e do sistema comercial,
chamou-se oficialmente de Conferência das Nações Unidas sobre
o Comércio e Emprego. Abandonou-se depois essa crença, à medida que teorias neoliberais passaram a acentuar uma espécie de
relação perversa entre pleno emprego e inflação, disseminando
conceitos deletérios como o de
uma taxa "natural de desemprego" ou a existência de milhões de
"inempregáveis". Temos de reagir
e voltar ao ideal do pleno emprego, cuja possibilidade estava sendo demonstrada pela economia
dos EUA até o início da atual recessão.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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