São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Argentina desmoraliza reforma do comércio mundial

GILSON SCHWARTZ

ARTICULISTA DA FOLHA

O retorno de temas como choque de civilizações, capitalismo e democracia pode ser saudável, mas por enquanto impera a confusão, possivelmente motivada pela sensação cada vez mais generalizada de que o sistema econômico internacional está mergulhando num ciclo recessivo com probabilidade crescente de terminar em depressão. Outro fator que pesa é a proximidade da cúpula ministerial da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Na semana passada, o Banco Mundial (Bird) divulgou seu relatório de perspectivas para a economia global. O sentido é o da reafirmação das virtudes do capitalismo, se houver coragem política para uma nova onda de liberalização. Contra essa visão idílica e economicista, é crucial perceber o que, na prática, condiciona a formação dos preços, em especial as condições de financiamento. É justamente esse ponto, aliás, que transparece na análise da América Latina.
O fato é que, embora a retórica seja liberal, a análise concreta, não apenas de Brasil e Argentina, mas de todos os países em desenvolvimento, está centrada na percepção de um grave descompasso entre fluxos comerciais e financeiros. A crise Argentina é bastante didática, porque ocorre num momento em que as taxas de juros caem em todo o mundo. O compromisso financeiro assumido é incompatível com o perfil de integração comercial argentino e brasileiro.
Com todas as letras, o relatório afirma que "Argentina e Brasil devem sofrer mais por causa das turbulências nos mercados de capitais do que devido a efeitos comerciais relacionados ao enfraquecimento da atividade global". Isso "reflete o nível elevado de dívidas públicas e privadas e grandes déficits em conta corrente (cerca de 3% do PIB para a Argentina e em torno de 5% para o Brasil)". Com esse perfil de dívida, nem a queda dos juros no resto do mundo ajuda.
O recuo nos preços das commodities prejudica mais intensamente países que, como o Brasil e a Argentina, abriram mão de políticas de exportação e substituição de importações, como as feitas pelos asiáticos. A explicação para esse endividamento sem melhora no padrão tecnológico (ao contrário, com regressão em vários setores) é muito simples: a obsessão com a estabilização de preços movida pela atração de capitais externos (frequentemente com base em juros elevados ou na privatização de estatais).
É importante sublinhar que a situação atual não é resultado da hipocrisia dos países mais ricos, que apenas defendem muito bem os seus próprios interesses. Nem é uma situação que se possa resolver com a expectativa de que o crescimento mundial ou uma forte rodada de liberalização comercial nos países ricos abram espaço para que as balanças comerciais garantam os recursos para financiar o desenvolvimento dos pobres.
É o padrão de financiamento que está errado; novamente é uma "crise da dívida". Mas a tal "reforma da arquitetura financeira mundial", que chegou a ser sugerida pelo ex-presidente norte-americano Bill Clinton após a crise asiática, caiu no esquecimento. Nos próximos dias, as atenções estarão voltadas para a reunião da OMC, mas não existe uma instituição multilateral capaz de reordenar o sistema financeiro internacional.
Liberalizar o comércio global sem garantir novas formas de financiamento, no entanto, é apenas realimentar as assimetrias que condenam os países mais pobres a sacrifícios crescentes. Como ilustra a crise argentina, reformas econômicas sem um modelo sustentável de financiamento apenas desmoralizam a própria agenda liberal.



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