São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Impostos e eleições

ALOIZIO MERCADANTE

 Derrama. Brasileirismo. No século 18, na região das minas, cobrança dos quintos em atraso ou de imposto extraordinário. (Dicionário "Aurélio")

A defesa do princípio da progressividade feita por Lula, ilustrada com um exemplo de modificação da tabela do Imposto de Renda, provocou reações veementes de algumas autoridades da área econômica do governo. A alegação: Lula estaria propondo uma quase-heresia, um aumento de impostos, e, pior, na contramão das tendências "modernas", ou seja, de redução das alíquotas incidentes sobre os níveis de renda mais altos, praticadas nos países desenvolvidos.
Deixemos de lado a veemência que estranhamente esteve ausente em outros episódios, como o da interferência desestabilizadora dos bancos de investimento norte-americanos nos assuntos internos do país, justificada sem muita sutileza pelo ministro da Fazenda, a quem precisamente caberia repudiá-la com a firmeza e a dignidade que se espera de um funcionário graduado do Estado brasileiro em situações desse tipo. Deixemos também de lado as críticas superficiais de alguns pré-candidatos à Presidência da República, que preferem o discurso demagógico à discussão séria e responsável dos problemas que o país enfrenta.
Qual é o núcleo da questão tributária no Brasil, em torno do qual gravita a argumentação de Lula? Dois aspectos são críticos nessa esfera.
O primeiro é o descasamento entre a carga tributária e a contrapartida de serviços que recebe o contribuinte. Nesse aspecto, o governo Fernando Henrique Cardoso tem tido um desempenho "exemplar": aumentou extraordinariamente os impostos e diminuiu os investimentos públicos e o gasto social por habitante.
No período de 1995 a 2001, a carga tributária bruta -um indicador global que expressa a relação entre a soma de todos os impostos, taxas e contribuições arrecadados pela União, pelos Estados e pelos municípios e o Produto Interno Bruto- passou de 28,6% para 33,2%. Em valores correntes, essas porcentagens equivalem a R$ 184,8 bilhões em 1995 e a R$ 392,6 bilhões em 2001, um aumento de 112,4%, muito superior à taxa de inflação acumulada no período que, medida pelo INPC, foi de aproximadamente 78%. O aumento real da arrecadação bruta -da ordem de 20%- talvez explique por que a reforma tributária nunca foi efetivamente priorizada pelo atual governo.
Essa verdadeira "derrama" produzida pelo governo Fernando Henrique Cardoso trouxe escassos benefícios para a população. Basta ver a situação da infra-estrutura, da qual a crise energética foi só um exemplo, do emprego e dos serviços básicos, como segurança, saúde e educação, as principais vítimas do ajuste fiscal permanente a que foi submetido o país como decorrência de uma política econômica generosa com os grandes grupos financeiros e com o capital estrangeiro, mas extremamente dura com as necessidades sociais da maioria da população.
Em realidade, por meio de diversas medidas isoladas, o governo fez a "reforma tributária" que lhe interessava. A CPMF é um exemplo simbólico desse processo: instituída provisoriamente em fins de 1996 com uma alíquota de 0,2% em substituição ao antigo IPMF, que vigorou de 1993 a 1994, acabou se transformando em um imposto permanente, além de ter sua alíquota elevada para 0,38%. A arrecadação propiciada pela CPMF em 2001 foi, em termos reais, 63,44% mais alta do que aquela obtida em 1994 pelo IPMF. No mesmo sentido, opera a não-correção, durante seis anos, dos valores da tabela de incidência do Imposto de Renda das Pessoas Físicas e o aumento de algumas contribuições sociais, que ampliaram a arrecadação e reconcentraram os recursos fiscais na União. Para quê? Para pagar a conta da incompetência do governo e da inconsistência de sua política macroeconômica.
O segundo aspecto crítico, agravado na gestão FHC, é o caráter regressivo do sistema tributário brasileiro. Nossa estrutura tributária está fortemente assentada sobre as transações de bens e serviços, os chamados impostos indiretos, que todos, ricos e pobres, pagam na mesma proporção em relação ao valor do bem ou serviço adquirido. A regressividade desse tipo de taxação é evidente em um estudo recente do Ipea: enquanto as famílias que têm uma renda de até dois salários mínimos mensais gastam 26,48% da sua renda com impostos indiretos, essa proporção cai para 7,34% no caso das famílias cuja renda é superior a 30 salários mínimos mensais.
A tributação dos alimentos, devido ao maior peso dos gastos com esse item no orçamento dos grupos de menores rendas, também tem um caráter claramente regressivo. Os impostos sobre os alimentos representam 9,81% da renda mensal disponível das famílias que ganham até dois salários mínimos, porcentagem que cai para 1,48% no grupo de rendas mais altas. Essa regressividade se projeta também no plano regional. Por exemplo, enquanto em São Paulo os impostos sobre os alimentos representam 8,34% da renda dos que ganham até dois salários mínimos mensais, em Fortaleza, essa porcentagem se eleva a 13,34%.
A regressividade do sistema tributário fica ainda mais patente quando se cruzam os dados de renda com os de carga tributária total, que inclui os impostos diretos e indiretos. O rendimento médio das famílias com renda superior a 30 salários mínimos é 37 vezes maior do que o rendimento médio das famílias cuja renda é inferior a dois salários mínimos. No entanto, a carga tributária do primeiro grupo -o mais rico- é de 18%, enquanto a do grupo mais pobre é de 28%.
É nesse contexto que se inserem as declarações de Lula. Não se trata de aumentar impostos, mas de redistribuir de maneira mais equitativa seu peso sobre os diversos setores sociais, desonerando os alimentos e produtos básicos de consumo popular, estimulando seletivamente a produção e fazendo pagar mais os que ganham mais, e não, como fez o atual governo, os que ganham menos. O Brasil não necessita aumentar mais a carga tributária para se desenvolver. Necessita, sim, é de justiça social e fiscal. E isso é o que propõe Lula.


Aloizio Mercadante, 47, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.
Internet: www.mercadante.com.br
E-mail -dep.mercadante@camara.gov.br


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