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LUÍS NASSIF
Os críticos da MPB
Cheguei a São Paulo em
1970, já fissurado em música brasileira. Do interior, ouvíamos os sons, curtíamos as histórias, mas não dispúnhamos das
informações. São Paulo era a
metrópole complexa, enorme,
mas não tínhamos o mapa dos
guetos musicais, os segredos da
noite, o endereço dos músicos.
Quando arrumei meu primeiro estágio, na "Veja", abriu-se
um mundo que jamais imaginara antes. Fui emprestado à editoria de Artes e Espetáculos, que
englobava comportamento, música e artes em geral. A editoria
contava com um quarteto de peso: Tárik de Souza, crítico de
música, José Ramos Tinhorão,
que fazia uma primorosa seção
"Gente", Léo Gilson Ribeiro, crítico de literatura, e Geraldo
Mayrink, de cinema, melhor texto da revista, ao lado de Tão Gomes Pinto e de Elio Gaspari.
Até então, a crítica de música
era basicamente intelectualizada, cult ou meramente impressionista. Ainda naquele ano de
1970, já morando em São Paulo,
participei de um festival de música em Poços de Caldas, que teve no júri Paulo Cotrim, crítico
oficial da "Veja". Dono do João
Sebastião Bar, "point" da MPB
da época, Cotrim teve papel relevante na disseminação da música concreta, de Gilberto Mendes
a Damiano Cozella, dos tropicalistas a outros movimentos inovadores. Ao lado de José Lino
Grunewald e de Augusto de
Campos, integravam uma espécie de crítica eruditizada da música popular.
Quando consegui meu estágio,
alguns meses depois do festival,
Cotrim já tinha saído da "Veja",
e, para seu lugar, fora promovido Tárik, que, com Tinhorão, teve papel relevante como consultor dos fascículos da Abril, de
Música Popular Brasileira, série
que revolucionou o conhecimento sobre o tema na época.
Havia outros críticos de peso
na época, como Maurício Kubrusly, no "Jornal da Tarde", e
Arley Pereira, no "Diário Popular". Mas o padrão de crítica dos
anos seguintes foi definido pelo
trabalho de Tárik e de Tinhorão.
Tinhorão já era o pesquisador
minucioso, o rato de sebo, o obcecado pela pesquisa. Tárik, o
crítico contemporâneo, que dessacralizava e despolitizava a
música, eliminando a falsa compartimentalização entre a música de "bom gosto" e a de "mau
gosto". Foi cumprindo uma pauta sua que percorri o inesquecível Las Vegas, no cais de Santos,
passando pela Paraguaia, em
Viracopos, e terminando na Jovita, em Poços, para uma reportagem sobre "música de zona".
Foi convivendo com ele que
aprendi que o papel do crítico
não era definir padrões de gosto,
mas entender e explicar as características que levam uma
música a encantar seu tipo de
público. Há que saber ouvir a
música "brega" como um "brega", a música de morro como
um sambista, o jazz como um
jazzman.
Tárik era quase despido de
preconceito. Coube a ele, entre
outros feitos, identificar a influência do choro na música de
Tom Jobim, especialmente em
"Chega de Saudade", e erigir
Jorge Ben em figura maior da
música brasileira. Recentemente, lançou um livro, um baú precioso no qual colocou muitos dos
tesouros que levantou ao longo
de sua carreira. Só um livro para
permitir a visão geral sobre a
importância de sua obra.
Tinhorão já era aquele ranheta maravilhoso, capaz das mais
ardidas verrinas contra a bossa
nova e das mais profundas pesquisas sobre as raízes da música
brasileira. Além disso, era personagem das crônicas de Nelson
Rodrigues, o mais brilhante e
reacionário cronista daqueles
anos.
Quantas vezes nós, os focas,
aceitávamos seu convite para almoçar no Jangada? Sobrava para nós não só a conta como a
obrigação de passar em sua pequena lotérica, na Lapa, e dar
uma hora de plantão perfurando cartões de loteria esportiva.
Tinhorão nos pagava regiamente, compartilhando seu conhecimento musical conosco.
Foi por meio deles que conheci
Cartola e Nelson Cavaquinho,
que me encantei com Ismael e
Candeias, que descobri que o
maior cantor brasileiro foi Orlando Silva, que aprendi sobre
Pixinguinha e Jacob, sobre Caetano e Chico, Radamés e Gaó.
A música brasileira muito deve aos dois.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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