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LUÍS NASSIF
Os jovens do interior
Meu pai teve formação cosmopolita. Veio de Buenos
Aires para São João da Boa Vista, depois para Poços de Caldas.
Tinha dez anos, mas os irmãos
mais velhos Martha, Rosita, Felipe e Clara, que foi amiga de
Pagu e morreu adolescente, traziam os ares da mais cosmopolita cidade da América Latina e
conviveram sem problemas com
o cosmopolitismo das temporadas de Poços e, fora das temporadas, com a cidade docemente
caipira do interior.
Mas minha mãe vinha de
uma família de imigrantes que
se constituiu em São Sebastião
da Grama, mudando-se para
Poços logo após a Revolução de
32. Ela e suas irmãs traziam
uma característica que encontrei em sucessivas gerações de filhos e filhas de imigrantes e que
tento descrever a seguir.
Nossos avós, os imigrantes do
início do século, aportaram no
Brasil com o sentimento de cidadania suficientemente desenvolvido para não se abrigarem
debaixo do manto de proteção
de algum coronel político. Chegaram trabalhando como colonos, depois foram para as cidades, alguns se tornaram agitadores políticos, outros se converteram em comerciantes, quase
todos trouxeram conceitos de cidadania que o Brasil ainda não
conhecia. Na Poços de Caldas
dos anos 40 e 50, a reação contra
os Junqueiras -chefes políticos
locais- partiu de uma classe
média recém-urbanizada, quase todos filhos de imigrantes.
Essa busca da individualidade, da afirmação na nova terra,
convivia com o medo de não se
manter na escala social, conquistada degrau a degrau. Em
um país com tal mobilidade social, com tantas crises sucessivas
e sem a rede de relações sociais
dos fazendeiros, esses rapazes e
moças aprenderam com seus
pais que a maior herança que
receberiam seria a educação e a
seriedade, a palavra dada, a
honradez e o trabalho. A âncora
social consistia nisso: em ler, ler,
sempre ler, valorizar os valores
intelectuais, o trabalho, a seriedade, serem exigentes consigo
próprios, considerando supérfluo qualquer prazer.
Como dona Tereza ironizava
minhas irmãs quando elas, adolescentes, se empetecavam para
ir aos bailinhos! Era bobagem,
dizia minha mãe, o que vale são
os valores intelectuais.
Mesmo depois de casado, levei
anos para ter minha primeira
televisão em cores. Queria, mas
não queria. Achava que iria
gostar demais, perder tempo demais na frente do aparelho. Só
adquiri uma quando comprei
no Mappin uma bomba de asma para minha avó, e ela não se
deu bem com o aparelho. A loja
não aceitava devolução, só troca por outro equipamento. Aceitei então a TV.
No dia-a-dia era a mesma coisa, o medo do prazer, da comodidade, como se um aparelho de
televisão, uma torneira de água
quente, pudesse comprometer a
têmpera, induzir ao acomodamento, afrouxar a guarda.
Atribuía essa superexigência
em parte à politização de minha
geração, mas, ao longo da vida,
até em pleno 2003, continuei encontrando essas mocinhas e mocinhos, e todos mantendo vivos
esses valores do trabalho, do excessivo rigor consigo próprios.
São diferentes dos cosmopolitas,
daqueles que tiveram pais que
trabalharam em grandes companhias, com a segurança das
grandes organizações, e aprenderam a conviver com essas relações hierárquicas, a navegar
pelas regras tácitas do emprego,
engolindo um sapo aqui, aprendendo a vender o peixe ali,
montando pactos com colegas,
chamando com o superior de
chefe e tendo paciência para
galgar os degraus hierárquicos.
A rapaziadinha do interior
vem para cá sem esse know-how, mas com uma acuidade
muito maior para entender gente, situações. Como contou Antonio Cândido, no prefácio de
"O Menino do São Benedito",
no interior convivemos com o
prefeito e com o lixeiro. E se percebem grandes e pequenos homens tanto entre os poderosos
quanto entre os humildes.
Leva um tempo para aprenderem a dosar trabalho e lazer, a
abrir a cidadela, romper com as
cobranças ancestrais e relaxar,
ainda que um pouco. Mas trazem uma herança que se transmite por gerações.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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