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OPINIÃO ECONÔMICA
A grande ilusão
RUBENS RICUPERO
Nada nem ninguém jamais
conseguiu afastar os governos da barbárie da guerra. No início do século 20, sir Norman Angell tentou provar, no livro que dá
nome a este artigo, que eram ilusórios e fruto de um defeito de raciocínio os supostos benefícios das
guerras. Com muito menos ingenuidade e a poderosa força persuasiva da poesia e da imagem,
Jean Renoir utilizou o mesmo título no filme definitivo sobre a futilidade da guerra.
Não obstante o impacto de um e
de outro, a Primeira Guerra Mundial começou quatro anos após o
livro e a Segunda mal esperou dois
anos do lançamento do filme para
fazer sua catastrófica estréia. Melhor talvez que o pacifista e o cineasta, o poeta austríaco Erich
Fried, prematuramente desaparecido, compreendia onde estava o
perigo ao escrever "Na colocação
certa": "Os assassinos estão no
meio de nós? // Mesmo isso já seria
perigoso // Mas ao contrário // Os
assassinos estão acima de nós" (do
livro "Lebensschatten", 1981, trad.
Celeste A. Galeão).
A ilusão a que se referia Angell
era a guerra, mas muita gente passou depois a associar a palavra à
Sociedade ou Liga das Nações,
nascida da reação pacifista à carnificina de 1914-1918. Está hoje na
moda comparar o destino inglório
da Liga ao que ameaçaria a ONU
neste momento. Como quase toda
comparação histórica, esta também peca por exagero e inadequação, ao passar em silêncio as seguintes diferenças fundamentais
entre as duas instituições:
1ª) os EUA fundaram a Liga,
mas nunca entraram, golpe inicial
que se revelou irreversível;
2ª) em consequência, a Sociedade das Nações jamais deixou de
ser um clube europeu, dominado
pelo Reino Unido e a França;
3ª) sua pretensão à universalidade era oca, pois quase todos os
povos da África, Ásia e do Caribe,
sob regime colonial, estavam ausentes e o país mais importante da
América Latina, o Brasil, deixou a
Sociedade cedo, em 1926, em protesto por não ter sido feito membro permanente do Conselho, com
a Alemanha de Weimar;
4ª) mesmo antes da crise final da
invasão da Abissínia pela Itália
fascista e da ineficácia das sanções
(1935-1936), a Liga já tinha sido
abandonada pelas principais potências agressivas, o Japão, após
invadir a Manchúria (março de
1933), e a Alemanha nazista, meses depois.
Dito isso, não há como negar
que a invasão do Iraque constitui
a crise mais grave enfrentada pela
ONU em mais de meio século, pois
atinge a razão de ser do sistema, o
princípio de que a segurança internacional deve ser assegurada
de modo coletivo, e não individual. Houve, é certo, episódios anteriores de uso unilateral da força,
como o do ataque anglo-francês a
Suez, a anexação de Goa e a invasão do futuro Bangladesh pela Índia, que não tiveram, contudo,
nem de longe, a amplitude e a seriedade do atual. Mesmo o precedente mais recente, o de Kosovo,
foi atenuado por duas circunstâncias relevantes:
1ª) não fazer nada teria tido a
consequência moral e legal muito
mais funesta de permitir o genocídio ou expulsão dos albaneses;
2ª) a ameaça de veto russo se fez
contra a maioria esmagadora do
Conselho, como se viu quando este
derrotou por 12 votos a proposta
da Rússia de declarar ilegal a ação
da Otan. Aliás, logo depois, ao
aprovar a administração de Kosovo sob a égide da ONU, o Conselho, conforme escreveu o professor
Thomas M. Franck, ex-presidente
da Sociedade Americana de Direito Internacional, de certa forma
legalizou retroativamente o recurso à força, buscando minimizar o
efeito negativo para a Carta da
ação militar ilícita.
No presente caso, os dirigentes
que assumiram perante a história
a gravíssima responsabilidade de
agir sem a aprovação do Conselho
sabiam perfeitamente que essa
aprovação é a fonte mais alta de
legitimidade e legalidade internacionais. O fato é que, enquanto a
maioria no Conselho parecia atingível, ela foi tentada por todos os
meios pelo presidente, primeiros-ministros e chanceleres da coligação. Como disse Robin Cook ao renunciar à liderança na House of
Commons: "A própria intensidade
daquelas tentativas acentua quão
importante era ter sucesso (na votação). Agora que esses intentos
falharam, não podemos pretender
que obter uma segunda resolução
não tivesse nenhuma importância".
Teve, assim, razão o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, quando advertiu que, "se certos membros do Conselho resolvessem agir
sem o seu aval, a legitimidade dessa ação seria amplamente contestada e não obteria o apoio político
para assegurar-lhe o êxito a longo
prazo". Dias depois desse artigo
em vários jornais do mundo, o secretário-geral reafirmava em
Haia que uma ação militar fora
do quadro do Conselho "não estaria em conformidade com a Carta". Não é preciso dizer que as previsões de Kofi Annan se confirmam a cada dia que passa.
Diante do fato consumado, há
quem diga que a ONU e o seu
Conselho de Segurança tenham
perdido credibilidade. Quem pensa assim confunde credibilidade
com efetividade. Ser crível é merecer fé, confiança, valor moral que
se adquire pela adesão à verdade,
a obediência a princípios. Nesse
sentido, a ONU e o Conselho ganharam mais credibilidade, ao resistir às pressões dos poderosos, e a
teriam perdido se tivessem votado
apenas para carimbar uma decisão de força. Efetividade é diferente, é do domínio dos meios, ter a
capacidade, os recursos para produzir efeito, coisa que a ONU não
tem nem nunca teve pois os fortes
e poderosos jamais quiseram emprestar-lhe uma parcela do seu poder.
O teste definitivo da ONU virá
no momento de decidir, após a
inevitável derrota do Iraque, se o
Conselho deve ou não aprovar sua
participação na reconstrução do
governo transitório, das instituições e estruturas destruídas do
país. A posição do Secretariado da
organização é que "ela não deve,
em nenhum caso, aceitar papel subordinado sob uma potência ocupante", devendo guiar-se pelos seguintes princípios: "Respeito da
soberania e integridade territorial
do Iraque; respeito pelo direito do
povo iraquiano de livremente determinar seu futuro político e controlar seus recursos naturais; necessidade de ajudar esse povo a estabelecer as condições de uma vida normal e de pôr fim a seu isolamento internacional". Termino
com a autoridade da palavra do
prof. Franck: "A resposta da ONU
a seu segundo teste nessa crise (...)
determinará a capacidade do sistema de salvaguardar sua credibilidade no futuro".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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