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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A esperança com pés no chão
ALOIZIO MERCADANTE
O governo Lula assumiu a
administração do país em
meio a uma crise grave e complexa, com fortes desequilíbrios tanto
no cenário internacional -a retração da economia mundial e dos
fluxos de investimentos externos, a
instabilidade dos mercados financeiros e as incertezas da guerra
EUA-Iraque- como no plano interno, no qual as tensões e os desequilíbrios acumulados em diversas frentes ao longo dos oito anos
precedentes deixaram uma herança extraordinariamente pesada:
uma economia em situação de extrema vulnerabilidade externa e
semiparalisada, um Estado debilitado pelo crescimento da dívida
pública e um nível de desemprego
aberto crescente. Agregue-se a isso
o desmonte da capacidade operacional do Estado, os desequilíbrios
patrimoniais associados à privatização, dos quais o episódio da AES
é só um exemplo, o desmantelamento de segmentos estratégicos
da indústria pesada -como o de
construção naval-, e o estrangulamento financeiro de alguns setores com custos ou financiamentos
indexados ao câmbio.
A combinação desses fatores, somada ao terrorismo econômico
praticado no marco da disputa
eleitoral, gerou um quadro crítico
em 2002, com o risco Brasil superando a casa dos 2.400 pontos, a
taxa de câmbio chegando perto de
R$ 4 por dólar, os preços internos
ameaçando disparar e a rolagem
da dívida externa -inclusive a
renovação das linhas de crédito
comercial- caindo a níveis sem
precedentes.
Naqueles momentos, em que se
decidiam as eleições, a tese dos governistas era que Lula seria um
misto de Chávez -de quem reproduziria o populismo voluntarista, mesmo sem o apoio militar e
parlamentar do líder venezuelano- com De La Rúa, cuja incapacidade de governar levou a Argentina a uma das piores crises de sua
história. A declaração do megainvestidor George Soros -"Serra ou
o caos"-, expressão da aliança
do candidato do governo com o
capital financeiro especulativo, resumia, em seu simplismo, essa visão.
A resposta a essas profecias enviesadas foi demolidora. A transição negociada foi um exemplo de
maturidade política e, ancorada
na clareza e na transparência das
atitudes e propostas programáticas do novo governo, permitiu reduzir as expectativas mais pessimistas e conter as manobras especulativas do mercado. A posse do
presidente Lula foi um encontro
jamais visto entre as ruas e o palácio, numa expressão jubilosa da
vitória da esperança sobre o medo.
O governo ampliou as alianças políticas e sua base de sustentação
parlamentar, formou um ministério amplo e consistente, iniciou a
implantação de um novo padrão
de participação da sociedade civil
com a montagem do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social e realizou uma reunião com
os governadores da qual, pela primeira vez, saem compromissos
concretos. Todos esses aspectos foram fundamentais para assentar
as bases da governabilidade e desfazer o quadro de desconfiança e
deterioração da situação econômica gerado nos meses precedentes.
Derrotada a tese do catastrofismo, a crítica tucano-pefelista deu
uma guinada: agora o governo
Lula é acusado de continuísmo.
Essa crítica, tão vazia e oportunista quanto a anterior, deixa de lado o fato de que, ao contrário do
que ocorria no governo FHC, a
atual política econômica não está
orientada para consolidar a lógica
do modelo econômico neoliberal,
fundada no binômio déficit nas
transações correntes do balanço
de pagamentos/aumento cumulativo do passivo externo dolarizado, que levou à desnacionalização, à privatização e à fragilização
da economia. A política de ajustes
graduais -expressão da pequena
margem de manobra do novo governo- objetiva criar as condições de retomada do crescimento
econômico e mudança do modelo
de desenvolvimento. Para isso, é
essencial não somente superar a
vulnerabilidade externa -recuperando de maneira sustentável o
saldo da balança comercial e reduzindo o déficit nas transações
correntes- mas também desenvolver novas frentes de ação na esfera real da economia.
Apesar do pouco tempo decorrido desde a posse do presidente Lula, passos concretos estão sendo
dados nessa direção, paralelamente à normalização progressiva
dos indicadores conjunturais -a
estabilização da taxa de câmbio, a
queda acentuada do risco Brasil, a
reabertura das linhas de financiamento externo e a contenção da
pressão inflacionária.
A ofensiva diplomática deflagrada nos últimos meses, além de
revalorizar o papel e a imagem do
país no cenário internacional, deu
uma nova dimensão à política comercial brasileira, mais firme e
aguerrida na defesa dos nossos interesses. O sistema de financiamento público, bastante fragilizado, está sendo reestruturado e as
instituições de fomento -o
BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal- já iniciaram programas de investimento
em diversos setores da economia.
O governo está promovendo um
amplo debate com a sociedade sobre as reformas tributária e previdenciária, que terão um papel importante na consolidação, a longo
prazo, do equilíbrio das contas públicas e no estabelecimento de padrões mais adequados de justiça
fiscal e social. Foi iniciada a reconstrução do sistema de planejamento estratégico, essencial para a
orientação das ações públicas e
privadas de desenvolvimento a
médio e longo prazo, cuja primeira fase se materializará no Plano
Plurianual (PPA), atualmente em
elaboração. A recente renegociação das dívidas dos pequenos produtores rurais, produto de um amplo acordo no Senado, pela primeira vez colocada como prioridade na agenda do país, representará um forte impulso à produção
e ao fortalecimento da agricultura
familiar, beneficiando cerca de
320 mil famílias. O Fome Zero,
apesar das dificuldades inerentes
a sua complexa natureza, começa
a estruturar-se como programa
articulado de produção, distribuição e consumo de alimentos.
Essas ações e iniciativas sinalizam claramente a direção e as
prioridades do processo de mudança. A opção por uma estratégia gradual não se confunde, nesse
contexto, com o continuísmo. Somente reflete a decisão de, no marco das restrições estruturais existentes, avançar rumo ao futuro
com os pés no chão, de maneira a
minimizar os custos da transição
para o novo padrão de desenvolvimento e a não frustrar as esperanças do povo brasileiro.
Aloizio Mercadante, 48, é economista e
professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário
de Relações Internacionais do Partido
dos Trabalhadores e líder do governo no
Senado Federal e no Congresso.
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