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OPINIÃO ECONÔMICA
Ópio do povo?
RUBENS RICUPERO
Diante da febre do futebol,
que, por uns dias, uniformizou as reações e emoções de povos
tão distintos como os da Alemanha e do Senegal, da Coréia do
Sul e da Inglaterra, é difícil não
evocar a tese do "homo ludens", do
ser humano motivado essencialmente pelo jogo, os de brinquedo
como o esporte e os "reais" ou "sérios" como a política e a economia. Não faltou até quem descrevesse o futebol como o substituto
moderno da religião, o "ópio do
povo" denunciado por Marx, contrastando o entusiasmo dos estádios com a falta de interesse pelas
eleições ou com as igrejas vazias.
Os europeus, que vivem num
mundo muito mais dessacralizado ou "desencantado" do que o
nosso, tiveram certa dificuldade
em compreender a religiosidade
dos brasileiros após a partida final, tomando-a por remanescente do espírito dos anos 70 ou pela
superstição de povos infantis. Não
se deram conta de que, no jogo como na vida, jogar bem ou melhor
nem sempre basta. Há sempre
margem para aquele imponderável ou imprevisto que decide as
batalhas, sorte ou providência,
azar ou desígnio misterioso de
Deus. Para Maquiavel, é a diferença entre "virtù" e "fortuna".
Para outros, é o que separa a força das armas e dos músculos, o
ímpeto dos carros e dos cavalos,
da vontade de Deus, Senhor da
História, que dá às vezes a vitória
aos fracos, que desfaz os projetos
das nações e destrói os planos que
os povos se propõem.
Foi, aliás, por captar os ecos das
invocações do Antigo Testamento
que o ministro anglicano Jeremy
Fletcher publicou no sisudo "Times" de Londres, na véspera do
jogo da Inglaterra contra o Brasil,
essa inacreditável prece: "Oh Senhor! que tua mão se levante e
aniquile a potência de Ronaldo e
Rivaldo" (esqueceu-se de Ronaldinho, erro fatal!). "Se necessário,
oh Senhor, conceda-nos um gol
duvidoso de impedimento no último minuto do jogo para que o
mundo inteiro reconheça que és o
nosso Deus. Que o gol deles seja,
para nós, tão espaçoso quanto um
hangar de avião e que seu goleiro
não seja mais alto que uma formiga."
Voltando, porém, a Marx, não
julgo apropriado comparar com o
ópio o futebol, que, longe de ser
fumaça e ilusão, produz alegria
verdadeira, emoção autêntica e
pura, ainda que não dure, como
tudo o mais da humana experiência. Ao menos ela é gratuita,
igualitária e democrática, uma
das únicas e raríssimas ocasiões
para celebrar e alegrar-se que ilumina os olhos e aquece o coração
da nossa gente humilde, do povo
pobre e escuro que se dependura
em árvores e se apinha nas ruas
para aplaudir heróis saídos do
seu meio, carne de sua carne.
Passei em Alexandria e no Cairo os dias que antecederam a final da Copa e vi como no Egito,
em toda a África, as pessoas se
identificavam com os jogadores
brasileiros, Ronaldo ou Ronaldinho, como "um deles", palavras
que ouvi de um embaixador africano e que ele não aplicaria obviamente a ingleses ou alemães.
Pouco depois, estava em Nova
York quando a televisão mostrou
a volta da seleção, os jogadores e
populares irmanados no mesmo
estilo afro de expressar o júbilo
por meio dos tambores e da dança, da percussão e do corpo. Pensei como tudo isso dava ironicamente razão a um ex-ministro da
Fazenda que, anos atrás, com intenção evidentemente não-lisonjeira, se queixava de que éramos o
país mais ocidental da África.
Não só da África, seria mais exato
dizer, mas de muitas outras partes, pois, conforme observava judiciosamente Tostão a um jornal
francês, o Brasil é por excelência a
pátria do futebol porque também
é o país da mestiçagem por excelência. Isto é, por ter ido mais longe na mistura, não só de sangue,
mas de culturas e modos de ser, o
país consegue aproveitar melhor
os seus inúmeros componentes étnicos, a totalidade da herança,
corpo e alma, qualidades físicas,
mas também a malícia, a graça, a
manha de cada ingrediente da receita de povo.
Em tom mais sério ou prosaico,
o "Financial Times" afirmou que
o futebol brasileiro é exemplo isolado de algo que falta ao Brasil
em outros domínios -uma indústria exportadora de sucesso.
Demonstraria igualmente que a
combinação de método, estratégia e disciplina com o instinto
criativo natural pode produzir
modelos de êxito, não só para o
esporte mas para a economia do
país.
Para mim, sobrevivente do
trauma da Copa de 50, a saga coletiva da seleção e a individual de
Ronaldo ajudam a superar o medo inconfessado de que éramos
fracos de nervos e resolução, fáceis de perder coragem quando as
coisas começavam mal para nós.
Provou que a garra não é apanágio de outros, que somos capazes
de reagir contra a adversidade,
mesmo desfavorecidos pela sorte
inicial.
O fascínio, a vibração da Copa
têm explicação adicional. O mundo fora dos gramados, o dos bombardeios que massacram inocentes, das bombas que trucidam
crianças e mulheres, dos muros e
cercas que aprisionam os desesperados, esse mundo está a cada hora mais sinistro e ameaçador.
Quem se espantará de que as pessoas busquem um pouco de alegria no jogo?
Por falar em alegria, um dos comentários mais perceptivos que li
foi o de Jacques Buob, no "Le
Monde" de 2 de julho. "O que é
bom com os brasileiros", escreveu,
"é que todo mundo fica contente
quando eles ganham. Os próprios
perdedores não lhes querem
mal... Nenhuma equipe no mundo provoca tal empatia". Após ensaiar várias explicações, conclui:
"Será talvez essa filosofia do jogo,
sua maneira cortês de conceber o
futebol e essa alegria de viver que
existe neles, um pouco infantil, e
por isso sempre emocionante.
Quando eles ganham, a gente se
sente feliz com eles; quando perdem, choramos com eles". O Brasil não poderia desejar elogio
maior.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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