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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Jogo perigoso
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Como se sentiria um cidadão
quando soubesse que iria ser
julgado por um juiz do PMDB ou
investigado por um delegado do
PT?
A escuta telefônica ardilosamente executada pela Polícia Federal para bisbilhotar Lula é o
mais recente episódio da novela
"A derrocada das instituições".
De uns tempos para cá, as disputas políticas e eleitorais têm sido
marcadas pela insana tentativa
dos partidos políticos -sem exceção- de usar os órgãos do Estado
para atingir os adversários.
Não é de hoje que fenece o espírito do respeito à lei e agiganta-se
a ferocidade dos que pretendem
resolver os conflitos com o exercício puro e simples das próprias razões. Tão grave quanto a impunidade é a punição executada ao
arrepio da lei e da decisão jurisdicional independente.
Nada pode ser mais trágico para uma sociedade do que a particularização da prestação da justiça. No Brasil, essa particularização está-se manifestando por
meio da penetração insidiosa dos
interesses partidários nos órgãos
encarregados de vigiar e punir. A
contaminação partidária tem
avançado sem nenhuma reação
dos que, embora percebam o fenômeno e o abominem, preferem
recolher-se diante da contundência e da ousadia dos que buscam,
a qualquer custo, a intimidação
dos inimigos, desafetos ou simples
adversários políticos.
É urgente impor limites à ação
pessoal e atrabiliária de autoridades atraídas pelos frêmitos e
cintilações da "sociedade do espetáculo", o "brilhareco" de 15 minutos de fama. As recentes manifestações de autoridades sobre a
testemunha anônima no caso de
Santo André são um exemplo impecável de como os deveres republicanos se dissolvem diante dos
esgares incontroláveis da subserviência ao governante de turno,
coadjuvada pelo corporativismo
mais escancarado.
Ademais, as relações promíscuas entre as autoridades judiciais e a mídia colocam os cidadãos brasileiros diante da pior
das incertezas: a absoluta imprecisão dos limites da legalidade.
As garantias da publicidade do
procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado -e ainda inocente- contra
os arcanos do poder, sobretudo do
poder não-eleito. Pois essas conquistas da modernidade, das
quais não se pode abrir mão, vêm
sendo pisoteadas por quem deveria defendê-las. Ocultam da sociedade, em cujo nome dizem agir, a
dedicação com que laboram para
tecer a corda em que enforcarão
as garantias individuais. É comum e corriqueira entre nós a
transformação das prerrogativas
funcionais em privilégios individuais e pessoais.
É a velha arrogância oligárquica nutrida por uma certeza: são
todos da mesma turma, aquela
que manda e desmanda. Há um
trânsito contínuo de pessoas, de
dinheiro e de influência entre as
esferas do poder: o big business, a
grande política, a burocracia pública e as corporações do mass
media. E, muito mais que isso, há
a formação de uma cultura comum.
O momento americano mostra
que o capitalismo neoliberal é a
consagração da santa aliança entre os meios de comunicação, o
poder econômico e as lideranças
políticas corruptas. Daí a escalada de fraudes empresariais, a
omissão diante do crime organizado e o uso da coisa pública para
fins privados. Isso suscita a perda
de legitimidade do poder e estimula o vale-tudo entre as burocracias no interior do Estado, desfigurando a soberania.
Entre as aberrações de nossa
época, certamente a menor não é
o abuso por parte de governantes
ou funcionários que, a pretexto de
acelerar as reformas, enfrentar
crises ou fazer justiça, violam sistematicamente as leis, cuja observância têm o dever funcional de
garantir.
A concentração e a confusão de
poderes são responsáveis por dois
fenômenos gêmeos, ambos funestos para a ordem democrática: a
apatia popular e a busca de heróis
vingadores, capazes de limpar a
cidade (ou o país), ainda que isso
custe a devastação das garantias
individuais. Nessa cruzada antidemocrática, militam os governantes que editam e reeditam
medidas provisórias, os senadores
que invocam as próprias virtudes
para justificar a violação do decoro parlamentar, os procuradores
que fazem gravações clandestinas
ou inventam provas e os jornalistas que, em nome de uma "boa
causa", tentam manipular e ludibriar a opinião pública.
Os beleguins que pretendem representar o Estado perderam a
vergonha e transformam os despojos da ordem jurídica numa arma de opressão e de controle das
aspirações dos cidadãos. É nesse
sentido que talvez, nos dias de hoje, seja lícito tomar a formulação
de Carl Schmitt sobre a exceção, o
"extremus necessitate casus". "A
decisão se separa da norma jurídica e, para se exprimir, a autoridade não tem necessidade do direito para impor o direito."
Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
Excepcionalmente, hoje, o artigo da professora Maria da Conceição Tavares
não é publicado.
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