|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
O estado-maior da folia
Muitos anos atrás, em
uma de minhas primeiras
viagens de longa distância, ainda em começo de carreira, fui
parar em Belém do Pará, para
uma reportagem sobre o asfaltamento da Belém-Brasília ou
algo parecido. Lembro até hoje,
sofrendo da solidão amazônica
de saber os meus no que parecia
ser o outro lado do mundo. No
quarto vizinho, ouço um chuveiro ligado e o sujeito cantarolando "De manhãzinha / quando chego lá em casa...". Era o
"Boiadeiro", de Klecius Caldas e
Armando Cavalcanti. Imediatamente senti-me em casa de
novo e descobri a imensidão do
Brasil.
Essa música me acompanhou
a vida toda, cantada por Luiz
Gonzaga, principalmente. Mas
a dupla sempre foi uma de minhas preferidas.
Novos personagens
A partir dos anos 40, a urbanização do Rio de Janeiro e o aparecimento de uma nova classe
média criam a saga de Copacabana e lançam dois novos personagens na música brasileira: o
funcionário público e o militar.
Na verdade, na história da música brasileira os militares se
desdobram em duas frentes. Há
uma linha de música instrumental riquíssima, que brota
das bandas militares. E um grupo carioca, desse período, filhos
da nova classe média, que pratica crítica de costumes.
Pertencem a esse grupo, entre
outros, o coronel Luiz Antônio
("Lata d'água na cabeça / lá vai
Maria"), o aviador Paulo Soledade e a dupla de autores de
"Boiadeiro". Os quatro são da
geração intermediária de compositores brasileiros talentosíssimos, mas pouco reconhecidos,
que faz a ponte entre os clássicos
(Noel, Ary, Pixinguinha, Lamartine, Custódio) e a moderna
música brasileira, inaugurada
com a bossa nova.
Klecius e Armando foram
amigos, vizinhos de casa e companheiros de caserna. Klecius
Caldas nasceu em 1919 no bairro de Lins de Vasconcelos, no
Rio. Armando, em 1914, em Pernambuco. O primeiro terminou
a carreira como coronel, o segundo, como general. Armando
morreu em 1964, no Rio de Janeiro. Klecius vive em Copacabana e vai muito bem de saúde.
Dos anos 40 aos 60, dominaram três frentes prestigiadíssimas da música brasileira da
época: o samba-canção, a toada
nordestina e a marchinha de
Carnaval.
Começaram em meados dos
anos 40 com o samba-canção, o
gênero que se sofisticava, ia beber nas águas do bolero e fornecer grande parte da base harmônica da futura bossa nova.
Clima de "Casablanca"
Em 1948, a estrela em ascensão Dick Farney gravou deles
"Somos Dois", enquanto o rei da
voz Francisco Alves gravava
"Palavras Amigas". Em 1956,
Dalva de Oliveira lançaria um
dos mais belos sambas-canção
da história, o "Nesse Mesmo Lugar" ("Aqui / nesse mesmo lugar"), símbolo máximo da boemia carioca do período, de uma
Copacabana que lembrava o
clima de "Casablanca".
Por esse período a música nordestina começava a ganhar corpo, através de Luiz Gonzaga, o
rei do baião, do "príncipe" Luiz
Vieira e, pouco depois, da "princesinha" Claudete Soares. Klecius e Armando assumiram o
ritmo, compondo "Sertão do Jequié", gravada por Dalva de
Oliveira, e o clássico "Boiadeiro", gravado por Luiz Gonzaga.
Mas os dois foram imbatíveis
mesmo é nas marchinhas de
Carnaval, interpretadas principalmente por Blecaute, meu vizinho do Espírito Santo do Pinhal, que se tornou conhecido
como "o general da banda". A
lista de sucessos que desfiam ao
longo dos anos 50 só tem paralelo nos clássicos de Lamartine
Babo e Braguinha-Alberto Ribeiro nos anos 30.
Em 1950 emplacam "A Marcha do Gago" ("Tá-tá-tá-tá na
hora / va-va-vale tudo agora"),
cantada por Oscarito, que acabou servindo de padrão para a
entrada de artistas da Atlântida
e vedetes no ramo das marchinhas carnavalescas. Outro clássico foi "Papai Adão" ("Papai
Adão / papai Adão / papai Adão
já foi o tal / hoje é Eva / quem
manobra / e a culpada foi a cobra"), de 1951, que meu pai ensinou para um amigo que, depois,
me ensinou.
Sátira de costumes
Em 1952 veio outro clássico da
sátira de costumes, "Maria Candelária" ("Maria Candelária / é
alta funcionária / pulou de pára-quedas / caiu na letra ó-ó-ó-ó-ó"), na voz de Blecaute. Em
1953 foi "Máscara da Face", gravada por Dircinha Batista; em
1954, "Piada de Salão", e, em
1956, "Maria Escandalosa", ambas gravadas por Blecaute.
Nos anos 60 eles navegaram
nas águas da marcha-rancho,
que teve uma ressurreição gloriosa no período com "A Lua é
dos Namorados", de 1961, e
"Lua Camarada" ("Vem, que a
lua é camarada / ao teu lado
quero ver amanhecer"), de 1963.
E é de 1960 um dos clássicos infantis do período, a balada "Sua
Majestade, o Neném".
É fascinante esse Rio dos anos
50. Não apenas forneceu a base
da moderna música brasileira
como do próprio país moderno
em que vivemos. Lamento apenas não morar na cidade, para
tentar recontar essa história
mágica de feitos e de sons.
E-mail - lnassif@uol.com.br
Texto Anterior: Lições Contemporâneas - Luiz Gonzaga Belluzzo: Jogo perigoso Próximo Texto: Fraudes do capital: Brasil paga por crise de empresas nos EUA Índice
|