São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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ARTIGO

Um plano de resgate para o capitalismo

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

A questão mais espinhosa sobre o capitalismo é de que maneira as empresas podem ser controladas. Trata-se de uma questão para a qual ninguém tem a resposta correta. A onda de escândalos nos EUA sugere que a resposta adotada durante os anos 90 foi, pelo menos sob alguns aspectos, a errada. Felizmente, as forças autocorretivas do mercado garantirão boa parte da mudança necessária.
Em qualquer economia competitiva, as empresas se vêem disciplinadas pela necessidade de gerar a renda necessária para pagar os insumos, a mão-de-obra e o capital que empregam. Se não o fizerem, desaparecerão.
A resposta padrão é que o controle final deve ser dos acionistas, porque cabe a eles o risco. Esse é um argumento poderoso, mas não onipotente. Se é difícil redigir contratos de emprego adequados, sociedades fechadas podem funcionar melhor do que sociedades sob controle de acionistas. O mesmo vale para as chamadas empresas sob controle dos "grupos de interesse".

Quem controla quem
No entanto, sob qualquer sistema de controle que não a administração pelo proprietário, existe uma relação central e particularmente intratável -aquela que vincula os controladores hipotéticos da empresa às pessoas que a administram. Os economistas classificam as dificuldades desse relacionamento sob três rubricas: ação coletiva; informação assimétrica; e relação agente-principal.
Não interessa investir amplos recursos para monitorar a administração caso tenham votos insuficientes para influenciar suas decisões. Esse é o problema da ação coletiva. O conhecimento único de que dispõem os administradores sobre a empresa gera a informação assimétrica. Aqueles que devem arcar com o risco dependem de terceiros para que ajam em seu nome. Isso cria o dilema do agente-principal.
Nos anos 80 e 90, o capitalismo norte-americano adotou uma forma altamente controversa de contornar essas dificuldades. O princípio do controle por acionistas se transformou em algo mais estreito e específico, a maximização do valor para os acionistas, medido em termos do preço das ações. Segundo Bengt Holmstrom, do MIT (Massachusetts Institute of Technology), e Steven Kaplan, da Universidade de Chicago, essa revolução teve duas fases.
Nos anos 80, os piratas que promoviam atividades agressivas de reestruturação sobrepujaram os executivos tradicionais. Quase metade das grandes empresas norte-americanas recebeu uma oferta de tomada de controle acionário naquela década.
Nos anos 90, os executivos haviam assumido como seus os objetivos dos piratas da década anterior. Com isso foi iniciada uma década de reestruturação ainda mais radical. Os executivos conseguiam enriquecer em escala semelhante à dos piratas, concedendo-se generosas comissões em ações. Em 1996 mais de metade do salário de um diretor de uma grande empresa de pendia do preço das ações do grupo.
Há três interpretações quanto aos motivos do ganho de importância dos mercados de ações.
A primeira, e até recentemente dominante, era a de que isso representava um avanço rumo a uma forma muito mais eficiente de governança corporativa.
A segunda é a de que esse modelo era apropriado ao mundo criado pela desregulamentação, pela inovação e pela globalização, mas poderia se tornar menos apropriado quando a economia voltasse a ser mais previsível.
A terceira é a de que a tendência refletia pouco mais do que uma astuta, ou mesmo desonesta, expropriação praticada pelos diretores contra os acionistas, em meio a uma alta nas Bolsas que costuma acontecer uma única vez na vida.
O desempenho da economia norte-americana sugere que a governança conduzida sob as normas do mercado de capitais tinha méritos. Maior produtividade, surgimento de novas empresas e dinamismo eram indicadores positivos. Mas a nova tendência ocultava imensos defeitos.
Os executivos tinham imenso estímulo para elevar os preços das ações, da maneira que fosse possível. Pensem na escala das operações de recompra de ações ou na feroz oposição à adoção de métodos próprios de contabilidade para as opções de ações. No entanto, uma análise executada pela consultoria Smithers & Co. sugere que, em 2000, o montante total das opções concedidas era equivalente a um quinto dos lucros registrados pelas empresas.

Debaixo do tapete
Enquanto a alta nas Bolsas prosseguia aparentemente sem limite, aquilo que Galbraith definiu como "bezzle" (os trambiques praticados, mas não descobertos, em um período de economia em ascensão) crescia em paralelo. Quando os mercados sofreram uma reviravolta, o "bezzle" se tornou visível. Algumas empresas implodiram. Outras começaram a praticar fraudes, ou a aprofundar as que já vinham praticando, e também implodiram.
O que acontece agora? O mercado está destruindo, por si só, as empresas fraudulentas ou incapazes. Insiste em padrões mais elevados de comportamento corporativo e auditoria. Suspeita mais da administração de receitas e de outras maneiras de manipular os preços das ações.
Esse impulso de autocorreção é muito poderoso. Assim, até que ponto deve ir a reforma?
Uma maneira de abordar a questão é recuar aos princípios iniciais. Os EUA e países semelhantes, como o Reino Unido, precisam fazer com que a posse difusa de ações funcione. O controle feitos pelos acionistas é igualmente vital. Mas o controle não pode significar fazer qualquer coisa para elevar os lucros e administrar as receitas de curto prazo. Vincular diretamente o pagamento dos executivos a essas flutuações nos preços das ações multiplica os já consideráveis perigos.

Transparência
Qualquer coisa que custe dinheiro aos acionistas, como as opções de ações, deve também ser revelada claramente nos balanços. Idealmente, as opções de ações, que distorcem os resultados, deveriam ser substituídas por ações restritas. O mais importante: sem contabilidade confiável em auditoria independente, novas ampliações na assimetria de informação destruirão o funcionamento efetivo dos mercados de capitais.
Boas coisas aconteceram nos anos 90. Mas muito de repelente também aconteceu. Ao menos, parte do que aconteceu de negativo emergiu devido aos incentivos perversos existentes no seio das corporações.
Os frutos do controle exercidos por acionistas e da difusão generalizada da posse de ações não devem ser desperdiçadas. Mas a sujeira que os circundava, na forma de imensos incentivos para que os executivos manipulassem os preços das ações, falseassem a contabilidade e expropriassem os acionistas, precisa ser eliminada.


Tradução de Paulo Migliacci


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