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OPINIÃO ECONÔMICA
A arte de dizer não
RUBENS RICUPERO
"Dizer sim é fácil. A arte da
liderança consiste em saber dizer não." Se, em relação ao
Iraque, tivesse seguido seu próprio conselho, Tony Blair não estaria na encrenca em que se meteu. Saber quando e como dizer
não é a essência da liderança.
Mas é também a condição de toda tática negociadora. Se, ainda
assim, a negociação ficar abaixo
do aceitável, impõe-se ir além da
tática e recusar o resultado, pois,
em certas circunstâncias, nenhum acordo é preferível a um
mau acordo.
Quem parece ignorar essas verdades são os setores que se assustam toda vez que o Brasil diz não
aos poderosos. Em defesa de interesses legítimos e vitais, o governo
brasileiro acaba de recusar, em
Genebra, o "diktat" americano-europeu em agricultura, na preparação da reunião de Cancún
da OMC (Organização Mundial
do Comércio). Em lugar de sentir
orgulho e conforto por atitude
digna e inteligente, houve os que
se escandalizaram diante da única posição que permite alguma
esperança de inverter um quadro
desfavorável.
Como todo mundo sabe, há
muito tempo vão mal as negociações comerciais na OMC e na Alca, por culpa do protecionismo
agrícola. Esperava-se em Genebra
que um entendimento nessa matéria entre os EUA e a UE (União
Européia) desbloquearia o caminho para um acordo em agricultura e em todo o resto. Os dois paquidermes do comércio mundial
finalmente se acertaram em 13 de
agosto (ah! mês fatídico!).
Fizeram-no, porém, não para
corrigir o desequilíbrio oriundo
do tratamento discriminatório da
agricultura, que já dura mais de
50 anos. O arreglo entre os grandes foi concluído na base da acomodação mútua dos respectivos
pecados e mesquinhos interesses,
em detrimento das justas aspirações dos demais. Em termos figurados, foi como se, uma vez mais,
o vício se apoiasse no braço do crime, para lembrar frase de autor
francês. Pelo acordo, os europeus
fecham os olhos aos escandalosos
subsídios americanos à produção
doméstica e, em paga, os ianques
deixam de pressioná-los a abrir o
mercado às exportações agrícolas.
Ambos alegremente se juntam
para legalizar os abusos, incluindo-os numa categoria de subsídios permitidos.
O troca-troca se estende às exportações: Washington desvia o
olhar das subvenções gigantescas
de Bruxelas e esta finge não ver as
distorções americanas no uso de
créditos subsidiados às exportações e da falsa ajuda alimentar
para escoar excedentes. Jogando
sal na ferida, os dois cinicamente
propõem punir os produtores
agrícolas eficientes, como a Argentina e o Brasil, criando uma
categoria de "países exportadores
líquidos de produtos agrícolas",
votados à execração pública e escalados para sofrer discriminação.
Os mecanismos de poder, que
costumam ser controlados pelo
que os bolivianos chamam de "la
superioridad", apressaram-se em
endossar o que a "Onorata Società" descreveria, na Sicília, como
uma "oferta que não se pode recusar". O desequilíbrio agravou-se mais com a exigência, em tarifas industriais, de todos os objetivos precisos e difíceis negados por
americanos e europeus em agricultura. Chegou-se ao ponto de
propor como obrigatória o que
até agora nunca passou de reivindicação exclusiva dos EUA: a participação de todos em negociações
para baixar a zero a tarifa em
inúmeros setores da indústria, alguns vitais para nós, como o químico.
Só não contaram com a capacidade de reação do Brasil. Celso
Amorim, que vem provando na
Alca, na ONU, em muito outros
domínios, agilidade, firmeza,
imaginação e iniciativa, instrumentou o embaixador em Genebra, Seixas Corrêa, valor dos mais
indiscutíveis da diplomacia brasileira. Em poucos dias, Seixas articulou uma das jogadas mais brilhantes que testemunhei em minha experiência internacional.
Conseguiu reunir os 20 mais expressivos países em desenvolvimento, 65% da população mundial, quase 50% da produção
agrícola, em torno de contraproposta que restabelece o nível de
ambição em agricultura e desenvolvimento adotado em Doha e
abandonado por americanos e
europeus. Não se trata de arroubo
juvenil e irresponsável, mas de
exemplo de quando e como se deve dizer não. O momento foi justo, nem demasiado cedo -esperou-se até a palavra comum e desapontadora dos dois grandes-
nem demasiado tarde, isto é, em
Cancún, sem tempo para esforço
mais completo. O "como" foi perfeito. Não apenas a rejeição do
inaceitável, e sim a formulação de
alternativa viável, nos mesmos
moldes da proposta recusada,
quer dizer, sem números ou porcentagens fixas, mas quadro geral
indicando com clareza os objetivos a atingir em redução do protecionismo.
Vai-se agora a Cancún com nítida polarização de posições. De
um lado, os ricos campeões do
protecionismo agrícola, os tradicionais -Europa, Japão- engrossados pelos EUA, que mudam
de campo. Do outro, o Brasil, a
Índia, a China, a África do Sul, a
Tailândia, as Filipinas, o México,
a América do Sul inteira, exceto o
Uruguai. Conforme disse o delegado europeu, é de novo a divisão
Norte-Sul. Não, contudo, no sentido ideológico, pois figuram em
nosso campo países como o Chile
e o México, de indisputáveis credenciais liberais. A divisão se dá
não por ideologia, mas por posição, pelo critério de ser favorável
ou não à liberalização agrícola e
a um melhor equilíbrio do sistema comercial.
Os que se atemorizam devem
lembrar-se da história recente.
Na Rodada Tóquio, dissemos sim,
e, uma vez mais, adiou-se a inclusão da agricultura no Gatt. Na
Rodada Uruguai, havíamos
aprendido a lição e dissemos não
duas vezes, a primeira em Montréal (dezembro de 1988), reunião
semelhante a Cancún, e a segunda em Bruxelas (dezembro de
1990). Houve escândalo e ameaças, as negociações tiveram de
prolongar-se, mas hoje em dia todos concordam que, se não fosse a
atitude do Brasil, da Argentina,
de outros três latino-americanos,
nem mesmo os modestos resultados então alcançados em agricultura teriam sido possíveis.
O Grupo dos 20 não fechou as
portas. Quer negociar. O quadro é
pior que antes, pois desta vez os
EUA estão contra. Pode ser que
alguns dos nossos aliados acabem
por fugir da raia. Tudo é possível,
mas, se o outro lado mostrar intransigência no protecionismo, o
melhor é dizer não e esperar. Para
quem pensa que isso é desaforo,
lembro o aviso que, nas casas em
Genebra, adverte sobre o cachorro:
"Cet animal est très méchant,
Quand on l'attaque, il se défend",
em tradução livre:
"Este animal é malvado
Defende-se quando atacado".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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