|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Um ano depois: o sentido dos acontecimentos
RUBENS RICUPERO
Mais do que a aterradora
explosão dos aviões contra
o World Trade Center, a imagem
que melhor simboliza o contraste
do mundo, antes e depois do 11 de
setembro, é a da demolição ou
edificação de muros. A primeira
é, sem dúvida, mais poderosa e
dramática visualmente, sendo
provável, porém, que não passe
de episódio terrível, mas único,
isolado, que não se repita, ao menos nesse grau de surpresa e intensidade. A segunda não se esgota no momento do evento. Tende
a perdurar, a prolongar seus efeitos muito além do ato.
Utilizando o vocabulário de
Fernand Braudel, as catástrofes
de Nova York e Washington foram acontecimentos, relâmpagos
exterminadores, mas instantâneos, cujo sentido tem de ser buscado além dos fatos. Já o desmantelamento ou a construção de
muros são ações que se estendem
no tempo, destinadas a durar e a
explicar melhor o sentido dos
acontecimentos.
O que caracteriza, a meu ver, a
nova era histórica cujo começo
coincide com o do século não é o
terrorismo, e sim fenômeno mais
profundo e universal: a insegurança geral de ricos e pobres diante de mundo injusto e desequilibrado, cada vez mais instável e
imprevisível. O período pós-Guerra Fria abre-se com a destruição
do Muro de Berlim, promessa de
que se poriam abaixo todas as
barreiras que separavam os seres
humanos. Assim se fez efetivamente durante alguns anos e vimos como foram sendo arrasadas
as muralhas do apartheid, as que
dividiam em duas metades a Alemanha, a Europa, as que subjugavam países anexados à força à
União Soviética, à Iugoslávia, ou
impediam a pacificação do Camboja, da América Central, do Afeganistão (na primeira fase, da invasão soviética).
De igual maneira foram sendo
desmontados os obstáculos comerciais à livre circulação de
mercadorias, com a conclusão da
Rodada Uruguai e a criação da
OMC (Organização Mundial de
Comércio), bem como os financeiros, que estorvavam o fluxo de capitais de empréstimo ou investimento, na fugaz etapa de liquidez
que alguns entre nós fatidicamente tomaram como permanente.
As duas tendências -o fim da
Guerra Fria político-ideológica e
a globalização econômica- se
reforçavam mutuamente e convergiam para um ponto de fuga
de unificação do planeta, que os
apressados interpretaram como o
fim da história. De repente, não
mais que de repente, o "mistério
da iniquidade" de que falava o
apóstolo Paulo estilhaça essa ilusão radiosa e traz de volta a alternância entre paz e guerra, progresso e retrocesso, a tensão entre
unificação e divisão ("diabolus"
em latim, "diabolos" em grego,
significa "aquele que desune, que
separa"). O 11 de setembro põe
fim ao período de pós-Guerra
Fria. Doze anos após a derrubada
do Muro de Berlim, os muros regressam mais fortes que nunca
para separar os homens: o de Israel contra os terroristas suicidas;
os dos europeus contra imigrantes pobres e refugiados; os do protecionismo dos EUA e da Europa
contra as importações de aço, de
produtos agrícolas ou sensíveis
dos países pobres; as barreiras de
metal para isolar os manifestantes; as cercas para defender a Casa Branca ou o Congresso.
Nem todos os muros são iguais.
As paredes de uma prisão, o arame farpado de um campo de concentração não devem ser comparados às grades destinadas a proteger as famílias contra os assaltantes ou a essas muralhas medievais que os mais bem aquinhoados são obrigados a erigir
em torno dos condomínios fechados. Quase sempre, contudo,
quando se levanta um muro é
porque fracassaram ou não se
tentaram soluções de fundo para
os problemas. O urbanismo anglo-saxônico, ingenuamente copiado em Brasília, desejava apenas gramados entre as casas,
idealizando uma sociedade na
qual não seria necessário trancar
as portas a chave.
Piores que todos são às vezes os
muros mentais que edificamos
dentro de nós mesmos para evitar
ter de aliviar a tragédia argentina, para não ver os africanos devastados pelas doenças e a miséria, os palestinos comuns, não os
terroristas, humilhados e empurrados ao desespero, o incomensurável aviltamento das nossas
crianças de rua, a degradação dos
nossos miseráveis, forçados a dormir na calçada e a comer no lixo.
Em menos de um ano, o período
pós-11 de setembro teve já duas
fases nítidas. A primeira parecia
buscar um consenso amplo contra o terrorismo por meio da
ONU, das resoluções do Conselho
de Segurança, de uma coalizão
não-limitada aos aliados ocidentais. Para isso, seria preciso ir
além do combate policial-militar
ao terrorismo e atacar as raízes
socioeconômicas, político-culturais do problema, desse e de outros que assolam o mundo, como
o do Oriente Médio, por exemplo.
Exigiria generosidade, tolerância, disposição de escutar o "outro", de compreender-lhe as dificuldades. Preferiu-se, infelizmente, caminho em aparência menos
complexo, mas que é a semente de
desastres futuros. O regime dos
talebans e a famigerada Al Qaeda
revelaram-se tigres de papel. Seu
esboroamento inesperado e prematuro fecha a primeira fase e
abre a segunda, caracterizada
por clareza muito menor sobre
quem é o inimigo. Antes não havia dúvida: os adversários eram o
terrorismo "de alcance global" e
os governos que o protegiam.
Agora as coisas são mais dúbias,
como se vê em relação ao Iraque
pelas divisões entre os aliados ocidentais ou as críticas de gente insuspeita de brandura ou pacifismo, Kissinger ou ex-colaboradores de Bush pai: o ex-secretário de
Estado Baker, o general Brent
Scowcroft, Lawrence Eagleburger.
Demonstradas a gravidade e a
iminência da ameaça, ninguém
se furtaria à solidariedade com os
EUA ou aos outros ocidentais,
desde que esses se mostrassem
igualmente solidários aos demais
naquilo que destrói a precária segurança das maiorias pobres,
doentes, sem emprego nem esperança. A solidariedade, com efeito, ou é indivisível ou não é. Como, de fato, convencer do perigo
iraquiano os habitantes das Ilhas
Maldivas, das inúmeras outras
ilhas e costas baixas do Pacífico,
de Bangladesh, ameaçadas de
afogamento pelo oceano, ao mesmo tempo em que as empresas petrolíferas dos ricos bloqueiam as
medidas contra o aquecimento
da atmosfera e o derretimento
dos gelos polares? Ou de que maneira se poderá persuadir os africanos de que o combate ao regime
de Bagdá é prioridade mais urgente que a luta contra a Aids, a
malária ou a fome, que já exterminam a cada ano dezenas de
milhões de seres humanos? É disso no fundo que se trata quando
dizemos que as únicas soluções
verdadeiras aos problemas atuais
são as do consenso democrático e
multilateral, não as do unilateralismo do poder, embora essas últimas sejam mais fáceis pois requerem apenas a adesão dos poderosos. Longe de ser abstrações de diplomatas, essas antinomias simbolizam a determinação de derrubar os muros que separam as
pessoas e impedem de ver o sofrimento ou a ilusão egoísta de construir novas muralhas físicas ou
mentais, condenadas a desmoronar um dia como as de Jericó ou
da Babilônia.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
Texto Anterior: Tendências internacionais Próximo Texto: Lições contemporâneas: O memorando sob cenário de guerra Índice
|