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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O memorando sob cenário de guerra
LUCIANO COUTINHO
É fato irretorquível a fragilidade da economia brasileira
após oito anos de governo FHC-Malan. O presidente que será eleito em outubro receberá o país em
condições muito vulneráveis, sob
a tutela do FMI (Fundo Monetário Internacional), com execução
orçamentária superapertada, dependendo criticamente de fatores
externos fora do nosso controle.
Desde logo, a saúde das contas
externas brasileiras depende crucialmente do comportamento dos
grandes bancos internacionais.
Desde julho -sob o efeito da
aversão global ao risco-, o Brasil
e suas empresas vêm enfrentando
uma evaporação dos créditos externos. Isso significa que as empresas devedoras vêm sendo obrigadas a resgatar dívidas que não
mais são roladas. Acresça-se ainda o enxugamento das linhas de
crédito ao comércio externo, prejudicando o desempenho das exportações. Em outras palavras,
apesar do importante aumento
do superávit comercial, aumentou significativamente o déficit de
caixa do país com o exterior, e o
Banco Central vem sendo obrigado a utilizar reservas para fechar
o hiato.
O acordo com o FMI, cujo memorando veio a público na semana passada, é uma confissão explícita dessa fragilidade. É claro
que os recursos do Fundo foram
bóia de salvação para evitar um
naufrágio irremediável e imediato. Essa bóia, diga-se de passagem, foi-nos oferecida com alguma "generosidade" por conta da
fragilidade de grandes bancos
americanos que, já debilitados
pela crise das fraudes contábeis,
não suportariam um colapso
cambial do Brasil. Até agora, porém, o acordo não se revelou suficiente, per se, para convencer os
bancos a retomarem plenamente
o crédito ao Brasil. Sem isso, os recursos do Fundo serão drenados,
as reservas cairão e a situação
cambial persistirá vulnerável embora a salvo de um default.
A reunião para coordenar o retorno das linhas de crédito, efetuada há duas semanas em Nova
York entre as autoridades brasileiras e os representantes dos banqueiros, sob os auspícios do Federal Reserve e do FMI, ainda não
trouxe resultados expressivos. Na
melhor hipótese, conseguiu estancar o processo de fuga, mas não
logrou ativar o crédito. Por isso o
ministro da Fazenda e o presidente do BC se empenharão em
obter na Europa, em reuniões semelhantes, a adesão dos bancos
do Velho Continente.
O sucesso desta nova missão depende, porém, de fatores incertos.
Os bancos estrangeiros estão sob a
pressão de agências de regulação
e de seus bancos centrais, que exigem que aumentem as provisões
para devedores de risco como o
Brasil. Estão também preocupados em não exibir um exposure-Brasil relevante em seus balancetes do terceiro trimestre. Há ainda uma preocupação residual
com o cenário sucessório. Esses fatores conspiram para que não haja recomposição do crédito.
A tudo isso, porém, se superpõe
o temor de uma guerra iminente
no Oriente Médio. Está em curso
uma ofensiva política e diplomática do presidente Bush, acompanhada de preparativos militares,
para um ataque ao Iraque. Esse
cenário, com alta probabilidade
de ocorrência, já vem exacerbando nos mercados financeiros o estado de aversão ao risco. A disposição dos bancos de retomar o crédito ao Brasil tende a ser postergada.
Um conflito bélico no Oriente
agrava os riscos econômicos globais. Desde logo, o preço do petróleo pode até ultrapassar US$ 40
por barril. Embora a produção do
Iraque só represente 3% da oferta
mundial e a Opep, hoje, supra
apenas um quarto do mercado, é
improvável que não haja impactos relevantes sobre o preço. Será
incômodo, politicamente, para os
países árabes compensar a quebra da oferta iraquiana e, ademais, há o risco de que a guerra
acabe provocando a disrupção física da oferta em países vizinhos.
Um repique incisivo dos preços do
petróleo problematizaria a frágil
retomada do crescimento da economia e do comércio mundiais
pelo menos até meados de 2003 se
a guerra não se prolongar.
É significativa, portanto, a probabilidade de complicação do
quadro internacional, com efeitos
deletérios sobre o Brasil. Se isso
ocorrer, o memorando do Fundo
já adverte que "a dinâmica da dívida (do setor público) é sensível a
mudanças nas variáveis macroeconômicas, sobretudo na taxa de
câmbio real, na taxa de juros real
e na taxa de crescimento real do
PIB (...) trajetórias desfavoráveis
(...) implicariam a necessidade de
superávit primário mais elevado
para estabilizar a relação dívida/
PIB em 2003". Em suma, mais sacrifícios e mais restrição fiscal sobre o próximo governo estão
preanunciados se tudo o que não
está sob o nosso controle não
marchar bem.
Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e
Tecnologia (1985-88).
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