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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
As contradições da hegemonia americana
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A economia norte-americana, por sua dimensão continental, sempre teve uma relação
complexa e assimétrica com a
economia mundial. Os impactos
do seu ciclo endógeno e da sua política econômica sempre foram
contraditórios com o funcionamento do restante do sistema capitalista por causa do peso do seu
próprio mercado interno. Ao contrário da Inglaterra, antigo centro cíclico principal, o novo centro
ainda é relativamente fechado
tanto ao comércio como às finanças internacionais.
Na condição de grande país
vencedor da Segunda Guerra
Mundial, os EUA tornaram-se rapidamente a potência hegemônica do sistema capitalista. O seu
poderio financeiro e militar, além
de prestígio moral, permitiu comandar a organização de todas
as agências multilaterais, inclusive um sistema monetário internacional baseado na própria
moeda. A hegemonia foi considerada benigna tanto para o processo de descolonização como para
os ex-adversários na guerra, Alemanha e Japão.
Na década de 70, surgiram os
primeiros sintomas de uma possível perda da hegemonia norte-americana. A derrota no Vietnã,
a ruptura do padrão dólar-ouro e
a ameaça concorrencial ao "made in America" provocaram um
sentimento de insegurança e de
perda da auto-estima que acabou
enterrando o sonho da "grande
sociedade". A retomada dura da
hegemonia americana deu-se no
governo Reagan com a diplomacia do dólar forte e das armas.
Desde então, vem ocorrendo uma
convergência entre a violência da
geopolítica e a violência financeira no sistema internacional, que
já provocou várias crises tanto no
centro como na periferia do sistema.
A violência da geopolítica não
reside somente no papel de gendarme da "ordem mundial",
substituto da violência dos anteriores impérios coloniais. Apóia-se na idéia de que não existe nem
deve existir, num futuro visível,
nenhuma potência à altura dos
EUA e de que o mundo multipolar das grandes potências terminou. O fim da URSS e a nova doutrina de segurança americana geraram uma nova "ordem unipolar", que pode ser reorganizada
periodicamente ao sabor dos interesses, da ideologia e até das
idiossincrasias de um novo poder
imperial republicano. Este dispensa o modo de exploração e dominação colonial, mas pode invocar o direito à intervenção unilateral, não sujeito a regras gerais
de Direito Internacional moderno nem a tratados de paz. Essa é a
natureza especial da Pax Americana, que não é comparável com
a da Pax Britânica.
A violência financeira, apesar
de ligada às iniciativas unilaterais do Fed adotadas nas duas últimas décadas -a chamada diplomacia do "dólar flexível"-, ficou mais abrangente com a desregulação dos mercados de crédito e
de capitais que foi levada a extremos na década de 90. A supremacia das finanças globalizadas não
afeta apenas a periferia, provoca
também movimentos bruscos de
valorização e de desvalorização
do capital financeiro que terminam atingindo o próprio centro
do sistema num nível muito mais
aterrador do que o da análise
constante no livro "Poder e Dinheiro" (M.C.Tavares e J.L.Fiori,
1997).
A liberalização financeira, imposta pelas políticas de Washington, foi particularmente desastrosa para os países da periferia do
sistema. As crises latino-americanas e do Leste Europeu na década
de 80 e novamente as latino-americanas, a russa e a dos países
asiáticos na década de 90 dão
provas da sua violência disruptiva. No início do século 21, o "blow
back" das finanças globalizadas e
desreguladas voltou a atingir os
próprios EUA, com uma grave
crise financeira interna que parece ser mais grave e prolongada do
que as verificadas no início das
duas décadas anteriores. As anteriores, embora se generalizassem
a todo o sistema mundial, permitiram uma rápida recuperação
do centro principal.
A massa de endividamento interno e externo da economia norte-americana funcionou, desde a
década de 80, como uma máquina de sucção e de atração de capitais na expansão (a economia
turbinada), mas também como
um mecanismo de destruição de
capital financeiro na reversão dos
ciclos de valorização sem precedentes na história do capitalismo.
A desvalorização da riqueza financeira entre 2000 e 2002 foi
muito maior em termos absolutos
e relativos ao PIB norte-americano do que a ocorrida na crise de
30. Não foi, porém, precedida por
um crash. Wall Street fechou com
o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. A reação do banco
central norte-americano foi pronta e eficaz, injetando liquidez nos
bancos nas semanas seguintes. A
atitude defensiva com resposta
imediata da política monetária e
fiscal ajudou a afastar o perigo
iminente de uma crise financeira
generalizada no centro do sistema.
A violência financeira foi temporariamente afastada. A violência geopolítica de uma nova guerra no Médio Oriente poderá afastar os perigos da recessão e da deflação na economia central? As
metamorfoses do capital e da
guerra, bem como o medo e a insegurança generalizados, não são
compatíveis com o diagnóstico e
as soluções keynesianas que o
próprio Fed autoriza. Parecem-se
mais com as contradições e crises
sucessivamente mais graves do
capitalismo internacional desregulado enunciadas por Marx.
Quaisquer que sejam os desdobramentos da crise atual, os dias
da "globalização benigna" sob a
hegemonia norte-americana parecem definitivamente encerrados. Estamos presenciando uma
degenerescência da "ordem mundial global" sobre cuja "reforma"
só o próprio centro imperial poderá tomar a iniciativa. Entretanto
todos os demais países estão na
defensiva e na luta pela sobrevivência dos seus povos.
Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@cdsid.com.br
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