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OPINIÃO ECONÔMICA
Mudou o jogo
RUBENS RICUPERO
O que faria o prezado leitor
se, a cinco minutos do fim do
1º tempo, em jogo que está perdendo, contra time dez vezes mais
poderoso, o adversário lhe dissesse que decidira unilateralmente
alterar as regras a fim de proibir
as jogadas em que você leva vantagem? Protestaria e continuaria
a jogar como se nada tivesse
acontecido ou concluiria que teria de reconsiderar tudo, uma vez
que o jogo já não é o mesmo?
É essa, sem exageros, a situação
com que nos defrontamos na Alca, após a sequência das salvaguardas americanas contra o aço,
a nova lei agrícola e as condicionalidades da TPA (Trade Promotion Authority). Sabia-se, desde o
início, que o jogo seria desequilibrado, pois, sendo as tarifas dos
EUA muito mais baixas que as
nossas, caberia a nós efetuar os
maiores sacrifícios. O interesse
brasileiro limitava-se, em substância, a duas áreas: a dos produtos que Washington seletivamente protege com barreiras altas e
nos quais somos competitivos
(aço, suco de laranja, açúcar, etanol, tabaco, carnes etc.) e o abrandamento das normas de defesa
comercial aplicadas com frequência contra nós (antidumping, direitos compensatórios, salvaguardas). Ora, são precisamente as jogadas nessas duas áreas que passam a ser inviabilizadas pelas decisões americanas.
Digo que o jogo não é mais o
mesmo porque as mudanças unilaterais tornam praticamente
inatingível o objetivo original,
que era, para nós, ganhar maior
acesso ao mercado dos EUA. Argumentar-se-á que esse mercado
continua a ser um dos mais abertos e dinâmicos do mundo -e é a
pura verdade. Tanto assim que,
neste ano, os chineses devem faturar, só com os EUA, um saldo comercial maior do que o total bruto das exportações brasileiras para todo o planeta! Para isso, contudo, não se necessita da Alca, já
que, como é público e notório, a
China não dispõe de qualquer
vantagem desse tipo, a não ser
sua competitividade em itens nos
quais as barreiras são baixas ou
inexistentes.
Certo ou errado, o discurso oficial sobre a Alca foi até agora o de
aumento do acesso ao mercado
(por exemplo, o excelente discurso do presidente em Québec). Se, a
partir de certo momento, o discurso e a realidade das negociações começam a divergir, de duas,
uma: ou se altera a estratégia negociadora ou se muda o discurso.
Em teoria, não é impossível
imaginar discurso que, em lugar
do acesso imediato, valorize a Alca como instrumento para atrair
investimentos estrangeiros a fim
de eventualmente fazer do Brasil
plataforma de exportações para
os mercados hemisféricos. Ou como maneira indireta de tornar irreversível o modelo ancorado no
sistema financeiro norte-americano, assegurando os recursos da
rolagem da dívida até chegar ao
cobiçado "investment grade", o
sinal verde para os investidores.
Ou, se se quiser, como meio de ministrar o que alguns defendem como "choque competitivo" à economia brasileira. É possível conceber outras variantes e combinações dessas fórmulas, moedas correntes entre nossos vizinhos. No
fundo do quadro, ficaria convenientemente à mão, para qualquer necessidade, o discurso tácito que não se diz, o espectro da
inevitabilidade da Alca sob qualquer forma, devido ao isolamento
do Brasil. É a chamada "variação
terrorista", tese em relação à qual
não faltam os que se comportam
como na frase da sabedoria castelhana: "No creo en brujerías, pero
que las hay, las hay".
Isso em tese. Na prática, as coisas são mais complicadas. Quem
se dispuser a seguir esse caminho
terá de assumir o ônus de sustentar, de peito aberto, que, não obstante o nome aliciante e enganador, não se trata propriamente na
Alca de buscar o "livre comércio",
ao menos para nós, e sim de conceder esse comércio livre ao lado
mais forte, com a esperança de
obter, por esse meio, outros benefícios ou compensações no setor
financeiro ou de investimentos.
Os propugnadores dessas diversas
variantes nas quais não se exclui
que possam existir elementos parciais de verdade deveriam demonstrar com argumentos concretos as vantagens e custos de
tais opções, submetendo-se à crítica em debate que, para ser salutar, precisa ser público, com
transparência de informações,
conforme exigiu o presidente no
discurso de Québec.
É a esse debate que desejo contribuir com a série de artigos iniciada com o dedicado à questão
das tarifas, mas que visa a objetivo muito mais amplo: discutir a
estratégia e a tática do que poderia vir a ser, no futuro próximo, a
posição negociadora do Brasil na
Alca. A discussão é imperiosa e
urgente não só devido à sucessão
e à importância do tema para decidir nosso destino nacional mas
por duas razões adicionais. A primeira é porque, em consequência
das recentes ações unilaterais
americanas, houve mudanças no
quadro negociador que desequilibraram ainda mais, em nosso detrimento, um panorama já precário e difícil. A segunda é porque
faltam menos de seis meses para
assumirmos, com os EUA, a co-presidência do processo, o que nos
obriga a definir, à luz das profundas modificações ocorridas, qual
será nele nossa conduta futura.
Tenho apoiado as linhas gerais
da postura brasileira, aplaudindo, por exemplo, o ministro Lafer
quando, logo no início de sua gestão, não perdeu tempo em explicar em Washington e várias capitais latino-americanas que não
poderíamos aceitar a antecipação
do cronograma. Da mesma forma, expressei apoio aos discursos
e tomadas de posição do presidente e do chanceler sobre cada
uma das iniciativas protecionistas dos últimos meses e à decisão
de suscitar na OMC a questão dos
subsídios agrícolas americanos
ou europeus contra produtos nossos. As reações iniciais do nosso
governo estavam corretas naquele momento, mas, para serem coerentes, terão de ser traduzidas em
atos concretos, caso as palavras
não bastem para levar o outro lado a mudar de atitude.
A verdade é que, neste mundo
em constante movimento, não é
só a política que, como a nuvem,
muda de forma a cada vez que se
olha. A imagem aplica-se também às negociações comerciais da
Alca ou da OMC. Essa nuvem que
paira sobre nossas cabeças está
cada vez mais carrancuda e é
bom começarmos a abrir o guarda-chuva.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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