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LUÍS NASSIF
Os que ficaram em Minas
A cidade cresceu, as esquinas mudaram, mas alguns
botecos continuam incólumes.
Aliás, a cultura brasileira, particularmente a música brasileira,
passa pelos botecos. E em Belo
Horizonte os botecos são particularmente acolhedores e têm
história, como a Cantina do Lucas, no edifício Maleta, onde tudo começou.
Por ele passaram, décadas
atrás, os primeiros integrantes
do Clube da Esquina. Antes deles, as raízes foram plantadas
pela bossa nova de Pacífico
Mascarenhas, pelo Madrigal
Renascentista, de Isaac Karabtchevsky e Maria Lúcia Godoy,
pelo Ars Viva e pelo Coral de
Ouro Preto. Ainda antes deles,
pelas modinhas mineiras de autores anônimos ou meramente
desconhecidos e pelos sons dos
tempos, das congadas e da viola,
da toada e das serestas.
No final dos anos 60, surgiu
Milton Nascimento juntando o
grupo. Misturaram a religiosidade mineira com o rock, a congada com a MPB e criaram a
música mais aprimorada dos
anos 70, superando a Tropicália
em musicalidade e consistência.
Depois, dispersaram-se pela
vida. Os da música instrumental espalharam-se pelo Brasil,
como o sopro divino de Nivaldo
Ornellas, o piano encantado de
Wagner Tiso. Milton mandou-se para o Rio, para se tornar referência mundial. Em Belo Horizonte ficou a maior parte do
grupo, Tavinho Moura e seu
som rural, os irmãos Lô e Márcio Borges, Beto Guedes e Toninho Horta, as letras de Fernando Brant.
Hoje em dia, floresce nos becos
de Belo Horizonte uma musicalidade intensa, rica como poucas no Brasil. Nesses tempos de
intensas transformações, dos
anos 80 e 90, Minas está onde
sempre esteve. Gerou o melhor
rock brasileiro, com o Skank, é
verdade, aprimorou-se nos corais, revolucionou a dança, com
O Corpo, tem grupos excelentes
de choro, como o Flor do Abacate. Criou uma escola de violão
personalíssima, a partir dos
sons de Chiquito Braga, e seus
seguidores, Juarez Moreira e Toninho Horta, que, com Yuri Popoff e André Dequech, acabaram constituindo o grupo "Vera
Cruz".
Mas foi ouvindo "Dois Rios",
de Tavinho, Fernando Brant e
Sérgio Santos, que a alma do
Clube da Esquina e seus descendentes inundou minha noite
paulistana. Recebi a música pela internet, e durante dois dias
meu computador não parou de
tocar as três versões, a instrumental com Tavinho, a cantada
com ele e Sérgio Santos e a sinfônica, gravada em Belo Horizonte. "Primeiro o som interior /
dentro da terra o rio quer nascer....", um clássico comovente
celebrando o encontro do rio
das Velhas com o São Francisco.
É nessa Minas de "Dois Rios" e
de seus três autores que está sendo tecida uma das grandes
obras da música brasileira contemporânea. Tavinho e Brant
compuseram uma sinfonia mineira, uma homenagem ao rei
do congado, com uma coletânea
de músicas arranjada por Nelson Ayres e Nivaldo Ornellas, na
qual o ponto máximo é "Dois
Rios". E Sérgio Santos, o sul-mineiro de Varginha, em parceria
com Paulo César Pinheiros, lançou um CD, "Áfrico", que é uma
obra-prima contemporânea, algo que, no futuro, poderá ser
equiparado aos sambas afro de
Baden e Vinicius.
Em ambos os casos, Minas penetra no culto do mistério. No
primeiro, de Tavinho e Brant,
tentando decifrar as raízes mineiras; no segundo, uma celebração da cultura negra, em que
Paulo César foi beber em Gilberto Freyre, e Sérgio, nas lembranças do tempo.
As músicas passam por todas
as instâncias de influência negra, do batuque à religiosidade,
da sensualidade à comida. É de
uma harmonia complexa, da riqueza rítmica que o interior de
Minas gerou e Milton aprimorou.
Sérgio Santos é o que de mais
sofisticado a música brasileira
tem no momento, ao lado de
Guinga e outros harmonizadores. Sua linha de composição
lembra a do samba-canção sofisticado que precedeu a bossa
nova. A voz é magistral, assim
como sua batida e sua harmonia ao violão.
Essa Belo Horizonte de Pacífico a Sérgio Santos, do bar do Bolão, na padre Eustáquio, resistiu
ao poder de atração do Rio e de
São Paulo. Em breve, seus sons
serão reconhecidos em todo o
país, como o que de melhor vem
sendo criado na música brasileira contemporânea.
E-mail - lnassif@uol.com.br
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