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PERDAS E DANOS
Dívida será reestruturada em 2003, afirma Morris Goldstein
Calote virá com qualquer presidente, diz analista
DE WASHINGTON
As chances de o Brasil ser obrigado a "reprogramar" (um eufemismo para dar o calote) sua dívida em 2003 são de 70%, não importa quem seja o presidente eleito em outubro. A estimativa é de
Morris Goldstein, especialista em
mercados internacionais de capitais que durante 24 anos, de 1970 a
1994, trabalhou no FMI (Fundo
Monetário Internacional).
A estimativa de Goldstein decorre do tamanho da dívida pública brasileira, comparada por
ele a um "elefante na sala" que todos fingiram não ver. A relação
entre a dívida externa e as exportações brasileiras atualmente é de
400% -inferior à da Argentina,
que chega a 500%, mas ainda assim "enorme", afirma.
Segundo Goldstein, desde 1980,
dos países que tinham uma relação de 400% entre suas dívidas
externas e exportações, apenas
um -o Chile- conseguiu reduzi-la a uma proporção razoável,
de 200%, sem reestruturar sua dívida. "Meu coração espera que o
Brasil escape, mas minha cabeça
sugere outra coisa."
Nos últimos sete anos de sua
passagem pelo FMI, Goldstein foi
o número 2 do prestigiado Departamento de Pesquisa. De lá para
cá, já como pesquisador do IIE
(Institute for International Economics), o mais importante centro de pesquisa econômica de
Washington, dedicou-se ao estudo das crises financeiras internacionais. Escreveu sete livros sobre
o assunto e elaborou propostas
para a reformulação da arquitetura financeira internacional.
(MARCIO AITH)
Folha - Nos últimos anos, o Brasil
transformou-se num caso de sucesso para o FMI e para o Tesouro dos
EUA. Adotou câmbio flexível, metas de inflação e obteve superávits
primários elevados. Mas os mercados questionam a capacidade do
país de honrar suas dívidas. O que
aconteceu? É um problema novo ou
a causa da turbulência atual já
existia lá atrás e ninguém a via?
Morris Goldstein - É uma combinação das duas coisas. O Brasil fez
avanços importantes, adotou políticas cambial e monetária coerentes, tem uma política fiscal responsável. Superávits primários de
3,5% do PIB não são pouca coisa.
Mas a situação do país é muito
frágil. Os maiores problemas são
excesso de dívida, externa e doméstica, e incerteza política. Obviamente, com risco-país a 1.200
pontos, fica claro que os mercados estão nervosos. Por quê? A relação entre a dívida externa e as
exportações é de 400%, enorme.
Não tão grande como a da Argentina (500%), mas ainda assim
enorme. Desde 1980, dos países
que tinham uma relação como essa, só um a reduziu para uma proporção razoável, de 200%, sem
reestruturar sua dívida: o Chile.
Folha - O governo brasileiro prefere comparar a dívida externa ao
PIB do país e insiste que o endividamento não é preocupante.
Goldstein - Não é seguro nem
acalma os mercados comparar a
dívida ao PIB e dizer que essa relação é de só 44%. Essa comparação
pressupõe que podemos transferir de alguma maneira recursos
do resto da economia para as exportações, o que dá na mesma. O
Brasil tem um setor exportador
que representa apenas 10% do
PIB, não é como a Ásia, onde, em
alguns casos, as exportações chegam a 40%. No Brasil, a dívida interna também é grande. Só a dívida do governo é de 44% do PIB.
Há US$ 30 bilhões em títulos denominados em dólar vencendo
neste ano. Quando o real se desvaloriza, a dívida pública aumenta. Quando os juros sobem para
interromper a desvalorização do
câmbio, isso também causa um
maior endividamento.
Folha - E o crescimento também
está baixo.
Goldstein - Também há problemas aí. O crescimento do PIB neste ano será de uns 2%. Em 2000,
superou 4%. O crescimento é chave para a solução do problema,
dado o peso da dívida. Com a taxa
de câmbio muito alta, é preciso
crescer, senão restará elevar ainda
mais o superávit primário para
estabilizar a proporção da dívida.
O país ainda tem um déficit em
conta corrente de 4%, e os investimentos diretos provavelmente serão metade dos de 2000 - cerca
de US$ 17 bilhões, em vez de US$
32 bilhões ou US$ 33 bilhões. As
exportações não cresceram tanto
desde 1998 e, desde 2000, não
cresceram nada. Houve elevação
do volume das exportações, mas
os termos de comércio se deterioraram, o que significa que o valor
das exportações é o mesmo. O
programa de privatizações parece
ter estancado. O governo atual ou
o próximo estão dispostos a privatizar o Banco do Brasil ou a Petrobras? Provavelmente não. O
endividamento externo é grande
num período de grande aversão
ao risco nos mercados de capital.
Olhe o número de países que estão pagando "spreads" próximos
de mil pontos-base: Argentina,
Uruguai, Venezuela, Peru.
Folha - Uma recuperação econômica dos países industrializados
poderá salvar a América Latina?
Goldstein - Não é o que vejo. Os
EUA estão contribuindo para a
aversão ao risco com seus escândalos corporativos. As Bolsas norte-americanas estão paradas há
dois anos. No resto do mundo, a
situação está complicada. A economia japonesa continua uma
bagunça, há problemas no Oriente Médio, o conflito Paquistão-Índia se agrava e o protecionismo
norte-americano, que afeta especialmente o Brasil, se fortalece.
Folha - O Real ou o FMI fortaleceram o Brasil contra crises externas?
Goldstein - Brasil, Argentina e
Turquia tinham dívidas enormes
no momento em que fecharam
seus programas com o FMI. Com
isso, há uma ameaça constante de
crise mesmo se você agir de forma
responsável. Mesmo se tudo caminhar bem, você só consegue se
manter por um ou dois anos. Assim que você começa a receber
notícias ruins, como choques de
comércio ou problemas na Argentina, todo mundo começa a
olhar para o cronograma de repagamentos do país. É automático.
Folha - Se a dívida existia quando
se fez o acordo com o FMI e se ela só
aumentou desde o início do governo FHC, como podemos dizer que o
caso brasileiro é um sucesso?
Goldstein - Bem, quando se fala
em sucesso, olha-se para o básico:
crescimento e inflação. A dívida
não é um problema isolado. Mas,
se existe uma dívida enorme, o
problema é constante. Se essa dívida não é resolvida no acordo
com o FMI, ela explode mais para
a frente mesmo se o país fizer o
resto com perfeição. É como o cara que herda uma dívida enorme
no cartão de crédito e diz: "Vou
mudar minha vida, vou reduzir
gastos, virar um cidadão modelo". Ele usa todo o salário para pagar os juros do cartão. Mas sua
mulher fica doente e, apesar de ter
se comportado bem, quebra. No
caso brasileiro, a doença se equipara à redução do investimento
direto, à queda no crescimento.
Folha - E as incertezas políticas?
Goldstein - São o segundo problema. Pergunta-se o que Lula vai
fazer se ganhar as eleições. Talvez
ele seja mais responsável do que
as pessoas pensam, talvez menos,
mas a dúvida existe. Mas a dívida
é o problema central.
Folha - Qual a chance de o Brasil
ter de "reprogramar" a dívida?
Goldstein - Espero estar errado,
mas acho que é de 70%. Olho os
números e vejo que, apesar do
câmbio flexível e de todos os outros avanços, é pouco provável
que o Brasil consiga atravessar essa fase sem reestruturar a dívida.
Folha - A reprogramação viria
ainda neste ano ou em 2003?
Goldstein - Por causa das reservas brasileiras e do apoio que o
Brasil tem em Washington, seria
até o final de 2003. A situação passa a ficar complicada no final do
próximo ano. Se as exportações
brasileiras fossem de 25% do PIB,
eu diria que a dívida não é um
problema tão grande. Se o crescimento fosse de 4% e os investimentos diretos continuassem
chegando ao Brasil na mesma
proporção, também. Mas, da minha cadeira, vejo outra realidade.
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