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OPINIÃO ECONÔMICA
É tempo de murici...
RUBENS RICUPERO
Já lembrei aqui o episódio,
um dos mais patéticos de Canudos. Ao tombar em combate
Moreira Cesar, o comando da expedição passa ao coronel Pedro
Nunes Tamarindo, nas palavras
de Euclides, "homem simples,
bom e jovial, avesso a bizarrear
façanhas", que, interpelado ansiosamente por um oficial naquele lance desesperado, responde
"com humorismo triste, rimando
um dito popular do norte: "É tempo de murici/Cada um cuide de
si...'". Redimindo-se do instante
de fraqueza, Tamarindo, "destemeroso e infatigável na hora da
catástrofe", iria morrer tentando
deter a debandada. Três meses
mais tarde, os novos expedicionários deparariam com renques de
caveiras branqueando nas orlas
do caminho e "um manequim (...)
lúgubre (o corpo do coronel) empalado, erguido num galho seco,
de angico, (...) o espectro do velho
comandante...".
Murici, ensinam os dicionários,
é fruto que só floresce em seca
braba. O sentido da expressão é
óbvio: quando apertam as condições externas, cada qual deve
confiar nas próprias forças. Poucos conselhos seriam mais apropriados a esses tempos agrestes.
Basta pensar em quantas perguntas desde o ano passado continuam sem possibilidade de resposta certa. Haverá guerra contra
o Iraque e, se houver, quando e
como, curta ou longa, sangrenta
ou fácil, com ou sem destruição de
instalações petrolíferas, de impacto desprezível ou catastrófico sobre as cotações do óleo e as economias dependentes do combustível? Abstraindo da guerra, o que
vai suceder com a economia americana e, por tabela, com a mundial, dentro do feixe de cenários
diversos contemplados: recuperação vigorosa ou frouxa e sujeita a
recaídas, dupla recessão ou nova
expansão puxada pela produtividade tecnológica? E os consumidores americanos, seguirão perdendo confiança na economia e
reduzindo as compras ou voltarão a impulsionar o ritmo das atividades? Quanto tempo levará
para absorver o excesso de investimento em telecomunicações e
informática, que efeitos terão os
escândalos e falências fraudulentas sobre os bancos e o mercado financeiro? E este último, voltará a
ter apetite para arriscar dinheiro
em economias vulneráveis como
as da América Latina, mesmo se
for correto o comportamento dos
governos da região?
Perguntas como essas podem
ser multiplicadas "ad nauseam",
tal é o grau de incerteza que se
abateu sobre o mundo. Incerteza
não é necessariamente sinônimo
de desgraça. É apenas a impossibilidade de calcular de modo razoavelmente seguro qual dos possíveis cenários embutidos em cada alternativa, o pessimista ou o
otimista, têm maior probabilidade de se realizar. Em outras palavras, a incerteza está na raiz da
insegurança, e esta tende a converter-se em apreensão, medo ou
desesperança quando os fatos negativos -perda de confiança dos
consumidores, aumento do desemprego, ameaças e preparativos de guerra- começam a prevalecer nitidamente sobre os sinais positivos. Nesse momento, isto é, quando a insegurança passa
a ser apreensão, ela mesma se
transforma em fator autônomo
de agravamento, ao induzir, por
exemplo, os agentes econômicos a
adiar o investimento ou o consumo para dias melhores. É assim
que as expectativas psicológicas
agem sobre a economia ou a política: às vezes, esperar o pior ajuda
a que ele aconteça.
Em conjuntura como a atual,
caracterizada por rápida e súbita
deterioração das expectativas e
excepcional aumento da insegurança, não existem remédios absolutamente eficazes nem políticas que mereçam a qualificação
de ideais. Para um governo como
o americano, cujas iniciativas determinam, até certo ponto, a direção dos acontecimentos, é diferente: muito depende do que ele
faça ou deixe de fazer no domínio
da estratégia ou da economia, o
que será mais verdade agora que
a vitória eleitoral, devida em parte à insegurança, possibilitará ao
presidente Bush controlar o Congresso e as decisões. Alguns poucos, também dotados de poder relativo, farão diferença se se mostrarem capazes de vontade e inteligência para bem usar o poder limitado de que dispõem, conforme
vêm tentando a França e, em
grau menor, a Rússia, na Conselho de Segurança da ONU. No caso da maioria, embora haja sempre um espaço de influência
maior ou menor a ser aplicado na
melhoria do contexto externo, o
principal será utilizar ao máximo
o potencial insuficientemente explorado para encontrar nas próprias forças a solução de problemas que, ao menos parcialmente,
dependem de cada país.
Parafraseando célebre frase de
um presidente americano e aplicando-a à nossa situação, não se
trata tanto de perguntarmos o
que o mundo exterior, o mercado
financeiro de Wall Street ou as
negociações comerciais da Alca
ou de Genebra podem fazer pelo
Brasil, mas sim o que nós, brasileiros, podemos fazer para aumentar a poupança doméstica e a
taxa de investimento, a fim de
ampliar e diversificar as exportações. Longe de exigir o comportamento irrealista de dar as costas
ao mundo, a "self-reliance" ou
auto-ajuda, tal como praticada
pelos asiáticos, é que tornará
mais favorável a atitude dos mercados financeiros, pois, ao diminuirmos a necessidade de empréstimos estrangeiros, estaremos, ao mesmo tempo, reduzindo-lhes o risco. Da mesma forma,
é o esforço de expandir a oferta
exportável em quantidade e qualidade, agregando valor aos produtos pela inovação tecnológica,
aliviando-lhes o custo por meio
da supressão de impostos, da
maior eficiência da burocracia e
da infra-estrutura de serviços,
que nos dará posição mais confortável para negociar acordos comerciais, libertando-nos da excessiva concentração em produtos
complicados da agricultura.
Foi o que ocorreu em época de
insegurança mais grave, a da
Grande Depressão dos anos 30 e a
da Guerra Mundial dos 40. O
Brasil teve de sobreviver, socorrendo-se mais de recursos internos, tanto financeiros para relançar o crescimento quanto industriais a fim de suprir importações
que não podia pagar ou simplesmente não eram disponíveis em
razão da economia de guerra.
Nem por isso nos desvinculamos
do mundo. A construção de Volta
Redonda e a ativa participação
no conflito provam que as duas
tendências se reforçaram mutuamente. Tal como então, o problema não se apresenta hoje em termos de disjuntiva extremada: a
subordinação de tudo -mesmo
a esperança dos pobres- a uma
globalização financeira radicalizada ou a ruptura evitável e tendente ao isolamento e à marginalização. Nossa experiência do
passado e a contemporânea de
três outras grandes nações-continentes, a China, a Índia e, cada
vez mais, a Rússia, revelam caminho alternativo. É o de conciliar a
mobilização dos consideráveis recursos humanos e materiais de
mercados gigantescos com a inserção qualitativa e gradual na
economia mundial, com prudência redobrada na dosagem do uso
de capitais estrangeiros que acarretam dependência e volatilidade. Cuidar de si, quer dizer, primeiro dos seus, em especial dos
débeis e vulneráveis, na medida
do possível com meios próprios,
eis aí, em sentido não-pejorativo,
a melhor maneira de atravessar
tempos de murici.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com
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