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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Fanatismos e pós-modernidade
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Umberto Eco é autor de um
artigo sobre a vida moderna
em que examina o comportamento dos fanáticos do chamado
esporte bretão, jogo desenvolvido
e aperfeiçoado pelo povo da República Federativa do Brasil.
Eco odeia os fanáticos pelo futebol, porque os vê como corifeus do
nacionalismo ecumênico, como
"criaturas tão convencidas da
igualdade entre os homens que
são capazes de quebrar a cabeça
do fanático da província limítrofe". Convencidos da universalidade do seu particularismo, distribuem porradas aos que estão no
mundo exatamente como eles, só
que do lado contrário.
Lembrei-me de Jean-François
Lyotard e de seu elogio da pós-modernidade: "Não podemos
mais recorrer à grande narrativa
- não podemos nos apoiar na dialética do espírito nem mesmo na
emancipação da humanidade
para validar o discurso científico
pós-moderno". A verdade é a parte; a fragmentação é o único caminho que pode reconciliar o indivíduo com a sociedade. Isso é o
que parece proclamar Lyotard em
sua fúria para destruir a herança
do Iluminismo. Lyotard argumenta que as concepções teóricas,
as interpretações da história, são
necessariamente coercitivas e
dogmáticas e, pior que isso, as filosofias da história levam inexoravelmente a humanidade ao beco sem saída da opressão e do totalitarismo.
Pois Eco descobre no fanático
por futebol o ser emblemático da
pós-modernidade, o apóstolo da
homogeneidade absoluta do discurso, um ponta-de-lança da
igualdade ao rés das chuteiras.
"Não tem sequer a noção de diversidade, variedade e incomparabilidade dos mundos possíveis."
Hegel havia imaginado que a
igualdade e a diferença não só
eram indissociáveis na sociedade
moderna como deveriam subsistir, reconciliadas, sob as leis de
um Estado ético. Esse Estado permitiria a cada elemento preservar
sua diferença em relação aos outros e, ao mesmo tempo, harmonizá-la entre si, manter a integridade do todo.
As transformações das sociedades modernas e o fracasso das
tentativas de impor o Estado ético
reforçaram, na verdade, a fragmentação e, neste particular, o
discurso de pós-modernidade
apenas conclui o que os fatos dizem. Os fatos dizem que assistimos ao declínio das utopias, à degradação das propostas coletivas,
ao memento mori das grandes filosofias. O mundo parece se aproximar, em sua evolução e na
transformação das consciências,
de um incompreensível mosaico
colorido, formado por todas as
torcidas de futebol que têm em comum a paixão pela bola e a dificuldade de aceitar as razões do
outro. "Deixem que os outros venham a nós. Assim poderemos
bater à vontade", resume Eco em
sua reflexão críptica.
O crítico norte-americano Fredric Jamenson, no entanto, suspeita que a passagem do período
moderno para o pós-moderno tenha significado a substituição da
alienação do sujeito pela fragmentação do sujeito. Sustenta
que essa fragmentação é, na verdade, o resultado de uma recusa
de se comprometer com o presente, ou, mais precisamente, de pensá-lo historicamente. A recusa de
pensar o presente como história é
também a incapacidade de reter e
de valorizar o passado, a tentativa desesperada de viver a história
como o eterno presente.
Jamenson está preocupado com
a incapacidade que tem o sujeito
moderno de compreender o sentido do que aparece fragmentado.
Para ele, a fragmentação do sujeito e de sua vida é a contrapartida
da integração cega e cada vez
mais abstrata das forças objetivas
da sociedade.
Na verdade, a integração das
"forças objetivas", ou seja, a
transnacionalização dos mercados e da produção, dos estilos de
vida e de consumo, opera sem
descanso e promove a colonização da vida individual e coletiva.
O desenvolvimento das formas de
produção -material encapsulado na lógica implacável dos mercados- impõe não só a racionalização da vida privada como
também uma maior complexidade da estrutura social.
Para o cidadão comum, tais circunstâncias parecem impedir o
controle dos processos econômicos e sociais. As erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões das Bolsas de Valores ou as
misteriosas evoluções dos preços e
das moedas são capazes de destruir suas condições de vida. Mas
o consenso dominante trata de
explicar que, se não for assim, sua
vida pode piorar ainda mais. A
formação desse consenso é, em si
mesma, um método eficaz de bloquear o imaginário social, numa
comprovação dolorosa de que as
criaturas da história humana
-da ação coletiva- adquirem
dinâmicas próprias e passam a
constranger a liberdade de homens e de mulheres.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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