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OPINIÃO ECONÔMICA
A hora do poder das trevas
RUBENS RICUPERO
Está mais para Sexta-Feira
da Paixão do que para Domingo de Páscoa a selvageria das
imagens que nos chegam do
mundo. Crianças mutiladas, cadáveres calcinados e conspurcados, a morte que chove do céu sobre culpados e inocentes, justos e
injustos, no fogo de helicópteros
americanos ou israelenses, terroristas islâmicos que se explodem
ou, pior, explodem meninos que
vão à escola com suas pobres merendas, operários a caminho do
trabalho lendo o jornal de esportes matutino. Um vento de loucura devasta as terras palestinas, o
Iraque, o Afeganistão, a Tchetchênia, o Kosovo, o Usbequistão,
a ilha de Bali, os subúrbios de
Madri, o Paquistão, Casablanca e
Tunis. Qual o próximo?
Quem é capaz de lembrar o ambiente de seis ou sete anos atrás, a
ingênua ligeireza com que os jornais de 1999 enchiam colunas
com especulações simplórias sobre o terceiro milênio, saudado
com luzes de artifício e fogos de
Bengala? O ano 2000 finalmente
chegou e se foi. Não trouxe o fim
do mundo. Ao menos não sob a
forma como é temido: com estrondo e explosão que abalam o
Sol e as outras estrelas. Tem-se às
vezes a suspeita de que o fim, de
fato, vai chegando, mas aos poucos, disfarçado, com despistes.
Não de uma vez, mas por pancadas, por desgraças sucessivas e cumulativas, como no imaginário
mítico do Apocalipse: uma espécie de revezamento de forças sinistras, que se substituem umas
às outras, cavaleiros da peste e da
fome, anjos exterminadores, catástrofes cósmicas.
Antes, havia um processo diplomático no Oriente Médio, líderes
corajosos em Israel, Rubin, Barak,
uma proposta de paz audaciosa,
mais do que se sonharia possível.
Havia presidentes americanos como Carter e Clinton, dispostos a
mergulhar por completo na solução de um problema que detém a
chave da paz ou da guerra para o
nosso tempo. O erro fatídico de
Arafat, ao rejeitar o acordo de
Camp David, marcou não só sua
morte política mas também o instante decisivo no qual as expectativas mudaram de signo e de sentido, passando da construção para a destruição. Desde então, desde as eleições americanas, os
atentados do 11 de Setembro, os
conflitos se acirraram, os problemas apodreceram. Tudo, Iraque,
terrorismo, Oriente Próximo, está
mais complicado, com menos esperança. É irrelevante os intelectuais discutirem se está ou não
em curso um choque de civilizações e de culturas. Na prática, objetivamente, conforme diriam os
marxistas, o que vemos são, de
um lado, americanos, ingleses, israelenses; do outro, muçulmanos
de todos os gêneros, sunitas, xiitas, matando-se uns aos outros,
não talvez devido à incompatibilidade de suas civilizações, mas de
suas barbáries.
É óbvio que nem tudo se pode
reduzir à questão palestina. Existem outros fatores, de autonomia
maior ou menor -a geoestratégia do petróleo, a frustração árabe com a decadência e o domínio
estrangeiro, o fanatismo integrista, a revolta contra o despotismo
feudal. Não há como negar, no
entanto, que o catalisador que
precipita essa explosiva combinação é o espetáculo contínuo de
ocupação e violência no Oriente
Médio. Embora todas as dificuldades estejam inter-relacionadas,
nenhuma proposta do tipo que os
americanos sugerem acerca da
democratização do Oriente Médio terá chance de funcionar se
não passar pela solução do problema palestino.
É sugestivo como essa questão
-mais que Taiwan, Caxemira, a
Coréia do Norte- permanece como o ponto crucial das relações
internacionais desde o fim da
Guerra Fria. Essa é a área cultural de onde brota a civilização
ocidental, o berço das grandes
culturas -Babilônia, Assíria,
Egito, Pérsia- às quais tanto devem gregos e romanos. Nascem aí
também as três grandes religiões
monoteístas do livro: o judaísmo
da Bíblia, fonte de todos, o islamismo do Corão, o cristianismo
do Evangelho. Os dilaceramentos
políticos da região e suas repercussões no mundo islâmico, junto
à juventude de origem árabe na
Europa, começam a alimentar o
inquietante aumento do que, segundo Edgar Morin, seria absurdo chamar de anti-semita da parte de árabes, também semitas,
mas do que é apropriado denominar de antiisraelismo, derivando
freqüentemente em antijudaísmo.
Nesse contexto perturbador é
que se insere a "Paixão de Cristo",
de Mel Gibson. Não tendo assistido ao filme, falta-me competência para comentá-lo. É possível
que seu efeito seja benéfico para
muitos que desconhecem a extraordinária riqueza dos evangelhos. Que ele não venha, contudo,
a reforçar a perigosa deriva contemporânea para integrismos de
todo tipo. Este é o pior momento
possível para trazer de volta estereótipos lamentáveis como o de
um povo culpado de deicídio,
contra-senso absoluto, como de
novo lembra Morin, por tratar-se
de Jesus ressuscitado e vivo. Aliás,
essa acusação foi repudiada da
forma mais clara e explícita no
Concílio Vaticano 2º. Antes, em
1938, Pio 11 já declarara taxativamente que "o anti-semitismo é
inadmissível. Espiritualmente
nós somos semitas".
Não é preciso, com efeito, ter fé
religiosa para admitir, como faz o
grande assiriólogo francês Jean
Bottéro, que o povo judaico deu à
humanidade duas contribuições
inigualáveis. A primeira foi a
concepção de um deus único, puramente espiritual, não antropomórfico, transcendente ao homem e ao mundo. A segunda é a
noção de uma religião moral,
consistente não em ritos e formalismos, mas na mudança do comportamento dos homens, uns em
relação aos outros.
Num belo texto de 1910, León
Bloy dizia esquecer-se que Jesus
"é um judeu, o judeu por excelência de natureza (...) que sua mãe é
uma judia (...) que todos os seus
ancestrais foram judeus, da mesma forma que todos os profetas,
enfim que nossa inteira liturgia é
totalmente derivada dos livros judaicos". E terminava: "O anti-semitismo é o golpe mais terrível
que Nosso Senhor continua a receber na sua Paixão".
Esta, diz Jesus na Paixão, é a
hora do poder das trevas. Mas ela
não há de durar para sempre,
posto que é uma hora e haverá
outras, entre elas a da fresca madrugada da ressurreição. No luminoso artigo de Morin que venho citando, também está presente o dualismo das trevas atuais e
da luz possível, que só pode ser,
para o autor, a de uma solução
equitativa da questão palestina e
uma política ocidental equitativa
para o mundo árabe-muçulmano. Essa "solução real e, ademais,
realista", reconhece o sociólogo,
"é hoje totalmente irrealizável". E
conclui: "Que tragédias ainda,
que desastres em perspectiva se
não se conseguir fazer com que o
realismo passe a fazer parte do
real".
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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