São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Direito à saúde e à vida

RUBENS RICUPERO

Chegou a 70% a economia que o governo brasileiro arrancou dos laboratórios ao negociar o barateamento dos remédios essenciais do coquetel de combate à Aids. Como foi possível obter tal redução de monopólios protegidos por governos poderosos? Graças a um dos "espaços de flexibilidade para políticas de desenvolvimento" que devem ser preservados, de acordo com o discurso de posse de Lula. Nesse mesmo discurso, o presidente rejeita as "restrições inaceitáveis ao direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo".
Infelizmente, a tentativa de impor tais restrições segue mais viva que nunca. É o que se viu ao fracassar, na véspera do Natal, a negociação para dar segurança operacional ao direito reconhecido aos pobres (e a todos) de proteger a saúde pública sem "restrições inaceitáveis" devidas à propriedade intelectual. Esse direito tinha saído reforçado de Doha, da reunião da OMC (Organização Mundial de Comércio). Na ocasião, as nações industrializadas flexibilizaram suas posições em parte por precisarem do apoio dos subdesenvolvidos para lançar novas negociações comerciais, em parte porque haviam sido pressionadas pela opinião pública mundial, comovida com a tragédia da Aids na África e inspirada pelo bem-sucedido programa brasileiro de combate à pandemia.
Esse programa nasceu de projeto do presidente Sarney, que garante tratamento gratuito a todo brasileiro sofrendo de Aids. Generosa a ponto de não ter paralelo mesmo em países avançados, a iniciativa seria inviável para nação pobre como a nossa, caso não se reduzisse o custo do coquetel. Graças à energia e à tenacidade do ministro Serra, arrancou-se dos laboratórios o barateamento. Como os laboratórios dispunham do monopólio do controle de certos componentes do coquetel, o ministro teve de fazer-lhes ver que o Brasil recorreria à "licença compulsória" se eles não cedessem. Isso significa que a patente seria rompida e o medicamento poderia ser produzido como genérico. Para dar credibilidade à hipótese, era preciso que o laboratório público de Manguinhos estivesse em condições de realizar a tarefa, o que foi parcialmente demonstrado pelo desempenho de uma farmacêutica brasileira, petista por sinal, que aparece como heroína na notável reportagem da revista do "New York Times", que consagrou mundialmente o programa brasileiro. Se realço aqui a contribuição de personalidades com filiação política diversa é apenas para mostrar que o programa não pertence só a um governo, mas a todo o povo brasileiro, embora alguns indivíduos se tenham assinalado na sua execução.
Mas tudo repousava em base juridicamente contestável: a licença compulsória e a "importação paralela", isto é, a importação de fabricante que não detenha a patente. Essa alternativa seria necessária se fracassassem as negociações com os laboratórios, pois o Brasil, ao contrário da Índia, não possui capacidade para produzir as moléculas primárias. Tanto a licença quanto a importação eram, no passado recente, direitos líquidos e certos segundo a Convenção de Paris, o código tradicional da propriedade industrial, que se esforçava em equilibrar o monopólio temporário representado pela patente com instrumentos visando a evitar o abuso desse direito exclusivo. Insatisfeitos com a flexibilidade da Convenção de Paris e motivados por sua influente indústria farmacêutica, os americanos, eficazmente auxiliados pelos europeus e outros desenvolvidos, desequilibraram o jogo na Rodada do Uruguai com o acordo Trips sobre "aspectos da propriedade intelectual relacionados ao comércio". Esse acordo não só eliminou boa parte da flexibilidade anterior como tornou ambíguo e confuso o recurso à licença e à importação.
Com vistas a impedir que o torniquete apertasse ainda mais, os subdesenvolvidos condicionaram em Doha o lançamento da rodada à aprovação de declaração separada reconhecendo que nada, no acordo Trips, pode impedir que um país tome medidas necessárias à proteção da saúde pública. Foi uma grande vitória da delegação brasileira, com destaque mais uma vez a José Serra, mas também a Lafer, a Celso Amorim, então embaixador em Genebra, e a Seixas Corrêa, seu sucessor, outro esforço coletivo de figuras do anterior e do atual governo.
Faltava, contudo, um pequeno detalhe: tornar operacionais as modalidades de importação para países sem capacidade própria em indústria farmacêutica. Como sabem os americanos, "o diabo costuma estar nos detalhes". No caso, o diabo foram as grandes indústrias farmacêuticas, cuja ajuda teria sido decisiva na reconquista do Senado dos EUA pelos republicanos. Devido a esse poder acrescido e como os ricos já não necessitam mais do acordo dos subdesenvolvidos para lançar as negociações, ficou o dito pelo não dito. Tentou-se primeiro restringir o direito apenas aos mais pobres, jogando os africanos contra nós, que acabaríamos excluídos. Não tendo colado a manobra, passou-se a exigir lista que limite as doenças às quais se possa aplicar o procedimento. Pode parecer razoável, mas o problema é que nenhuma dessas exigências constava da declaração de Doha, fruto de delicado equilíbrio. Aceitá-las será começar a ceder, sem contrapartida, parte do pouco que se conseguiu, já que a vitória de Doha permitiu reconquistar apenas parcela insignificante do enorme espaço entregue, de mãos beijadas, na Rodada do Uruguai. Na véspera de Natal, os subdesenvolvidos fizeram o que deviam: preferiram não ter acordo nenhum e ficar com a declaração em vez de enfraquecê-la em troca de mau acordo. Os poderosos sofreram grande desgaste ao não respeitar o prazo de dezembro, isolando-se em atitude de insensibilidade em relação às promessas de Doha e às aspirações de maior espaço para as políticas de desenvolvimento. Ainda não se pode dizer, como na ópera, "la commedia è finita". As pressões se renovam para um acordo em fevereiro. Junto do desafio da Alca, esse será o primeiro teste do novo governo na defesa do "direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento". Decisão, no caso, entre os interesses comerciais dos grandes laboratórios e o direito à saúde e à vida de milhões de pessoas.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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