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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Os neocríticos
ALOIZIO MERCADANTE
A vitória do candidato Lula
provocou diversas reações.
Uma das mais instigantes foi a de
articulistas e jornalistas que atuaram como porta-vozes do governo Fernando Henrique Cardoso e
a de tucanos de diversas plumagens que, de repente, passaram a
ter um senso crítico extremamente aguçado. Senso crítico que estranhamente nunca se manifestou nos últimos oito anos, nos
quais a economia brasileira sofreu processo de desorganização
selvagem, o desemprego e a violência foram levados a níveis críticos, o Estado foi institucional e
financeiramente desmantelado e
a autonomia do país reduzida a
níveis incompatíveis com a condição de nação soberana. Houvera
esse senso crítico aflorado com a
intensidade que hoje se manifesta, provavelmente a situação do
país seria muito melhor.
Seria muito cômodo desqualificar esses críticos -chamando-os
de neobobos, por exemplo- como o governo anterior fez quando
advertíamos sobre os efeitos destrutivos e os riscos, agora reconhecidos por todos, das políticas
de abertura comercial e financeira desregulada e de sobrevalorização da taxa de câmbio que
marcaram o primeiro mandato
do ex-presidente Fernando Henrique. Muitas das severas restrições que o país hoje enfrenta nas
áreas fiscal e externa são ainda
consequência daquelas políticas.
No processo eleitoral, muitas
das críticas ao candidato Lula e a
seu programa careciam de argumentos sólidos. Seu objetivo era
mais o de difundir o medo. Mas a
esperança venceu o medo. Agora,
pouco mais de uma semana após
a posse do novo governo, as críticas sobre sua orientação e desempenho ressurgem. São, na melhor
das hipóteses, prematuras. O que
não significa que não devam ser
consideradas e até esclarecidas.
Essa é a intenção deste artigo.
É possível resumir essas críticas
em três teses. A primeira é a de
que Lula reproduziria no Brasil a
experiência do ex-presidente argentino Fernando de la Rúa. Em
sua vertente de direita -explicitada pelo candidato derrotado,
José Serra-, essa tese teria como
eixo a suposta incapacidade do
governo Lula para governar, entre outras coisas pela sua falta de
competência técnica, apoio político e credibilidade externa. A queda acentuada do dólar, o clima de
otimismo que tomou conta do
país, a qualidade e a amplitude
da equipe de governo e a habilidade demonstrada pelo presidente Lula na articulação da sua base de sustentação política são evidências objetivas da falta de fundamentação desse tipo de crítica.
Para alguns segmentos da esquerda, a argumentação tem outro viés: para não reproduzir o
fracasso de De la Rúa, seria necessário fazer, antes, tudo o que foi
feito na Argentina depois da sua
queda: moratória da dívida externa, renegociação compulsória
da dívida interna etc. Ora, isso
não é opção, é falta de opção e
não tem nenhuma relação com a
situação da economia brasileira.
A segunda tese é a de que o presidente Lula seria um outro Chávez, que levaria a sociedade brasileira a um isolamento internacional e a uma desagregação interna
em razão da radicalidade de suas
posições, da dificuldade de interlocução democrática e das consequências econômicas e políticas
daí advindas. Também aqui as
evidências objetivas -a idéia do
pacto social que permeia a estratégia política do governo Lula, a
criação do Conselho Nacional de
Desenvolvimento, incorporando
os segmentos representativos da
sociedade, a mediação do conflito
na Venezuela, a reafirmação da
disposição negociadora do país
sustentada na defesa dos interesses estratégicos nacionais- vão
na contramão desses argumentos.
Por último, dizem os neocríticos
que nada vai mudar, que a política do governo Lula terá que ser a
mesma do governo FHC, porque é
muito fácil criticar, mas outra
coisa é governar com "responsabilidade". Mais uma vez a tese
confronta a realidade. Não é que
não vai mudar. Já mudou. A posse de Lula, emoldurada pela
maior mobilização popular já vista em um evento dessa natureza,
já simboliza essa mudança. Já é
mudança a incorporação da sociedade à discussão das estratégias e políticas de desenvolvimento do país; já é mudança o encontro do presidente com as centrais
sindicais; já é mudança o compromisso com os programas sociais; já é mudança colocar a fome como prioridade nacional.
Evidentemente a margem de
manobra do novo governo é muito pequena, em decorrência da
pesada herança deixada pelo governo Fernando Henrique, principalmente pela extrema vulnerabilidade externa e pela fragilidade das finanças públicas, que determinam adicionalmente fortes
limitações à retomada do crescimento econômico. Agregue-se a
isso o aumento das tensões inflacionárias derivadas da crise cambial -em outubro e novembro
passados a inflação anualizada já
alcançava 34% medida pelo IPCA e mais de 80% medida pelo
IGP-M- e o quadro internacional desfavorável gerado pela contração da economia dos EUA, a
redução dos fluxos de investimento e financiamento para os países
em desenvolvimento e as perspectivas de agravamento da situação
mundial associadas ao provável
ataque dos EUA ao Iraque.
Essas circunstâncias, como dissemos durante a campanha, impõem severas restrições ao processo de mudança inaugurado com
a eleição do presidente Lula. No
entanto, com criatividade, responsabilidade e determinação, é
possível avançar, inovando no
padrão de relacionamento com o
FMI, redirecionando o sistema financeiro da ciranda da dívida
pública para o crédito à produção
e à exportação e fortalecendo as
cadeias produtivas que sustentam o consumo de massas.
Superar a vulnerabilidade externa, manter a inflação sob controle e retomar o crescimento econômico, tendo como eixo articulador desse conjunto a inclusão
social, formam o grande desafio
da nova política econômica a ser
implantada pelo governo Lula.
Não é preciso ir muito longe no
tempo para perceber a magnitude
e o significado dessa política em
termos de ruptura com um padrão histórico que sempre priorizou a elite. Talvez seja isso o que
tanto incomoda os neocríticos:
mudar com responsabilidade.
Aloizio Mercadante, 48, é economista e
professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e
secretário de Relações Internacionais do
Partido dos Trabalhadores.
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