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LUÍS NASSIF
Os guetos musicais de São Paulo
Amigos , eu vi. Com olhos
que enxergam e ouvidos que
ouvem fui a uma casa em Santo
Amaro, de onde se via ao longe
Interlagos. Uma atmosfera mágica, uma névoa musical envolvia
os presentes, como que os transportando para outra dimensão.
Vi quando a pianista Dudah se
dirigiu ao piano, como uma daquelas pianeiras históricas, dos
tempos de Chiquinha Gonzaga, e
despejou uma mistura de choro e
ragtime capaz de levantar paciente de UTI. E vi quando o conjunto Flor Amorosa entoou um
vocal tão bonito como eu não ouvia desde o início do Quarteto em
Cy. Em seguida, ouvi uma jovem
cantora de nome Adriana Godoy
tirando da garganta sons de que
apenas Elis Regina seria capaz.
Noite avançando, as visitas dirigiram-se ao salão principal como uma procissão de iluminados
aguardando a celebração final.
Abriu-se o piano, e vi quando
Marinho Boffa passou a dedilhar
escalas, arpejos e acordes de uma
riqueza que teria humilhado os
músicos do Blue Note. E vi quando Laércio de Freitas, a quem Radamés chamava de gênio, levantou-se lentamente, qual um príncipe etíope, empurrou Boffa para
o lado agudo do teclado e passou
a martelar os graves como jamais
ouvi em nenhum CD pretérito,
presente ou futuro. A batida vinha num sincopado complexo,
uma harmonia com nuances a
quatro mãos, com tais desdobramentos que se diria que a música
estava sendo reinventada.
Saí daquela casa e fui a um restaurante de Santo Amaro onde
Miltinho Tachinha tirava de sua
guitarrinha sons e improvisos que
não envergonhariam Garoto.
João Torto bordava no cavaquinho harmonias à altura de Canhoto, e o violão sete cordas de
João Macacão soltava bordões da
melhor escola brasileira.
Dormi em êxtase, acordei no
domingo, almocei e voltei ao caminho de Santiago dos guetos
musicais de São Paulo. Fui parar
num sobrado modesto da Pompéia. Lá vi os consagrados trompete de Silvério e trombone de Zé
da Velha acompanhados pelo sete cordas imbatível de Zé Barbeiro e de Israel. Vi quando rapazes
entraram na roda, abriram partituras e saíram lendo e improvisando de um modo que as velhas
gerações não tinham por hábito
fazer. Ouvi a gaita de Vitor, a
flauta de Rodrigo, o cavaquinho
de Pingo, como tinha ouvido antes o bandolim de Danilo e, antes
dele, os múltiplos instrumentos de
Arnaldinho, todos quase rapazes,
quase meninos.
À noite, em casa, recebi Cabelo,
um músico curitibano de 50 anos,
filho de boiadeiro. E Cabelo tirou
sons de viola caipira e de violão,
dedilhou Barrios e Beatles, pontos
de viola e de choro, com um virtuosismo de gênio rústico.
Aí trabalhei intensamente durante cinco dias para me preparar para o final de semana seguinte. No sábado retomei a trilha de São Pixinguinha e fui dar
em uma casa na remota Vila São
José, que tinha ao fundo um salão
enorme, com 40 pessoas reunidas
silenciosamente, como membros
de confraria, celebrando a música
de Izaias, de um madrigal montado com pessoas do bairro. E ouvi uma menina linda, noiva do
maestro, com uma voz que lembrava Bidu Sayão.
Depois, segui para Brasília e fui
parar no Clube do Choro e na Escola de Música Raphael Rabello,
onde o bandolinista Reco constrói
sua obra monumental. E vi violonistas exímios, bandolinistas virtuoses ensinando a sua arte para
uma molecada inebriada pelos
sons e pela magia do choro.
Nos próximos fins de semana
estarei garimpando novos guetos,
para encontrar o bandolim de
João Macambira, os pianos de
Benjamin Taubkin e Silvinha
Góes, os violões de Swami Jr. e
Chico Pinheiro, os sopros de Proveta, Pitoco e Mané Silveira, os
baixos de Pixinga, Arismar do Espírito Santo e de seu filho. E tantos outros, mas tantos outros que
eu, que peguei o final da bossa nova e a fase dos festivais, aderi ao
tropicalismo e fui devoto do Clube da Esquina, que acompanhei
os sons do sertão e dos salões, segui o rastro dos violeiros e dos violonistas, vi ano após ano as transformações musicais do país, ousaria dizer: jamais houve geração
musicalmente mais rica, em
quantidade e qualidade, do que a
atual, formada ou se formando
nos guetos musicais, longe das
gravadoras, das emissoras de rádio e televisão.
E ai de quem me disser que a
música popular brasileira está decadente.
E-mail - lnassif@uol.com.br
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