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OPINIÃO ECONÔMICA
Melhor que Lênin
RUBENS RICUPERO
O dano causado ao capitalismo americano pelas práticas inescrupulosas e os prejuízos
acarretados a milhões de assalariados e acionistas são de tal gravidade que nem Lênin teria feito
melhor. A opinião, quem sabe um
tanto exagerada, provém não de
um crítico da globalização, mas
de um banqueiro de investimento, ex-sócio de Lazard Brothers, o
até recentemente embaixador
americano em Paris, Felix Rohatyn.
Após a série de falências espetaculares e escândalos bilionários
que se seguiram ao estouro da bolha especulativa nos EUA, chegou
a hora do ajuste de contas e dos
processos judiciais. A Justiça americana, diferentemente da nossa e
da maioria, tem o sentido das
prioridades e é capaz de mover-se
em semanas, não em anos. Não
demorou muito para que alguns
dos ases do mundo de negócios
fossem apresentados às câmeras
de TV, algemados e conduzidos à
prisão. A rápida ação dos promotores está permitindo compreender pela primeira vez os mecanismos das falcatruas que alimentaram a bolha em torno da internet,
das telecomunicações e da energia.
Quem tem se destacado nessas
revelações é o procurador-geral
de Nova York, Eliot Spitzer. Ele
acaba de lançar ofensiva contra
os bancos de investimento pela
prática que os americanos chamam de "spinning", literalmente
a "fiação" na tecelagem, que não
sei se teria equivalente em português. Trata-se da operação pela
qual os bancos alocavam lucrativas ações de novas empresas por
eles lançadas a grandes executivos, os quais, em troca, reciprocavam, destinando aos bancos negócios milionários de suas companhias. O mecanismo operava
por meio das chamadas IPOs, ou
"initial public offerings", isto é,
ofertas públicas iniciais de ações
de empresas novas. Só que antes
de serem abertas à subscrição do
público essas ofertas eram, de início, reservadas a seleto grupo de
privilegiados a preço de banana.
Quase sempre tais ações disparavam a alturas estratosféricas no
primeiro dia de Bolsa. Mais que
depressa, os privilegiados se entregavam prazerosamente à prática do "flipping", literalmente
dar piparotes numa bolinha de
papel, quer dizer, passar adiante
as ações aos trouxas enganados
pelos analistas dos mesmos bancos que conduziam a operação.
Os bancos e corretoras que se
distinguiram nesse gênero de
IPOs foram a Goldman Sachs, o
Crédit Suisse First Boston e a Salomon Smith Barney, parte do Citigroup. O Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados dos EUA constatou que 8
das 21 IPOs lançadas pela Goldman Sachs se valorizaram ao menos 173% no primeiro dia (de
1990 a 1998, a média de valorização das IPOs no primeiro dia era
apenas de 15%). Um exemplo típico foi a firma eToys, lançada
pela Goldman Sachs e que ganhou no primeiro dia (maio de
1999) mais de US$ 2 bilhões. Hoje,
está falida. O procurador de Nova
York acusa os executivos favorecidos pelas IPOs de telecomunicações da Salomon de terem lucrado US$ 1,7 bilhão vendendo as
ações antes do colapso dos preços
e quer recuperar essa dinheirama
toda. Quem pagou o pato foi, como sempre, o investidor comum.
Das 21 firmas lançadas pela Goldman, 16 perderam ao menos 89%
do valor e várias estão falidas.
Das 15 manejadas pelo Crédit
Suisse First Boston, todas perderam 85% ou mais e diversas também faliram.
Para dar tempo às ratazanas de
completar o "flipping", os analistas continuavam a recomendar
ações prestes a naufragar. Das 36
ações recomendadas entre 1998 e
2002 por Jack Grubman, o astro
dos analistas de telecomunicações da Salomon, 16 faliram, inclusive WorldCom e Global Crossing. Como "castigo", o analista
recebeu em média US$ 20 milhões
por ano, em compensação por ter
ajudado a gerar US$ 1,1 bilhão
para sua firma. O procurador revelou que, num seminário sobre
as "melhores técnicas", em janeiro de 2000, os analistas da empresa receberam treinamento para
"manipular" modelos financeiros
capazes de produzir US$ 1 bilhão
em faturamento adicional e gordas comissões para os analistas.
Na correspondência interna, esses
supostos técnicos objetivos referiam-se às ações por eles recomendadas aos clientes como "cachorros" ou "pedaços de m..."!
Esses fatos edificantes projetam
luz estarrecedora sobre a banda
podre desse mercado a cuja misericórdia e compreensão nossos dirigentes entregaram o Brasil de
pés e mãos atados. Em começos
de agosto, ao participar de seminário patrocinado por "O Estado
de S.Paulo" e "The Wall Street
Journal", denunciei essas e outras
práticas dos analistas e das agências de avaliação de crédito, especialmente em relação aos juízos
sobre o Brasil. Como era de esperar, discordaram frontalmente de
mim dois dos painelistas, um da
Goldman Sachs e o outro da Merrill Lynch... Os adeptos do fundamentalismo do mercado gostam
de atribuir-lhe todos os melhores
atributos humanos e, de lambuja,
alguns divinos: onipotência, onisciência, infalibilidade. Só se esquecem de exigir que o mercado
tenha um mínimo de vergonha
na cara, que respeite, se não os
Dez Mandamentos, ao menos o
Código Penal.
Na falta desses requisitos, os
americanos, que podem ter todos
os defeitos, mas sabem agir decisivamente quando reconhecem um
problema, não demoraram em
aprovar a Lei Sarbanes-Oxley, de
1º de julho. Se tiver ocasião, voltarei a tratar dessa lei, que pode ter
sérias implicações para nós e outros países mais condescendentes
nessa matéria de proteger o interesse dos acionistas. Basta-me dizer aqui que a lei é uma tijolada
para executivos e contadores
fraudulentos, que arriscam pegar
até 20 anos de prisão firme.
Mesmo assim, não será fácil reconstruir a confiança em mercados que se revelaram indignos e
traiçoeiros dos 79 milhões de
americanos possuidores de ações
(eram 42 milhões em 1983). Essa
perda de confiança é um dos fatores centrais da atual crise que vive
a economia dos EUA. Ela mostra
que nem a economia, nem os
mercados, nem muito menos os
governos podem ser neutros ou
hostis aos valores morais. Tanto
os governos como os mercados
têm necessidade de uma base moral para que a economia funcione
adequadamente. Os mercados
acabam destruídos quando dominados por ladravazes, biltres e
gatunos disfarçados de analistas
ou banqueiros da mesma forma
que os governos terminam mal
quando caem nas mãos de bandidos e corruptos. Os que acham o
pecado um conceito superado deveriam saber que estava já tudo
contido nos Dez Mandamentos.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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