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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Descaminhos do maniqueísmo
LUIS GONZAGA BELLUZZO
Interessante, sem deixar de
ser oportuna, a defesa que Luís
Nassif fez do governo Fernando
Henrique Cardoso em sua coluna
na Folha de quinta-feira, dia 10
deste mês.
É saudável exorcizar as tentações do maniqueísmo. Melhor
ainda é benzer-se contra os demônios dos julgamentos peremptórios, aquela coceira do sabe-tudo que ataca vez por outra a pele
sensível de intelectuais, incluídos
nesta categoria os jornalistas.
O ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco chegou a
proclamar -em inesquecível entrevista à revista "Veja"- que os
tempos do nacional-desenvolvimentismo foram "40 anos de burrice". Quando prolatada, essa
sentença irrecorrível de condenação do passado exibia o quanto
pode ser estúpido o dogmatismo
economicista.
Era, então, de mau gosto, para
não dizer quase proibido, lembrar que o prolongado desfile de
burrice (sic), afinal, liberou o Brasil e os brasileiros da dependência
da exportação de café e de outros
produtos agrícolas menos votados
(alem do bicho-de-pé, da febre
amarela e da hemoptise), forjando a que já foi a mais importante
economia urbana e industrial do
chamado Terceiro Mundo.
Ninguém está disposto a sustentar que tudo foi uma maravilha.
Os resultados estão aí. A distribuição de renda é um desastre. Os
níveis de pobreza são vergonhosos. É estarrecedor, sobretudo, o
desamparo da população diante
das incertezas da vida e das andanças da economia.
Eleições suscitam polarização
de opiniões e exageros de pontos
de vista. A campanha eleitoral em
curso, como outras, tem sido pródiga em manifestações de destempero.
Primeiro, o preconceito: não
fosse por outras virtudes, a campanha de 2002 seria lembrada
por ter aberto as portas da baixaria aos bem pensantes. Um luminar do pensamento nativo decretou que Lula é o grande responsável pela turbulência cambial porque as expectativas quanto ao futuro governam o presente e os
mercados já decidiram que o PT
não pode governar. O povo brasileiro manifestou seu desacordo.
Mas pouco importa o que as urnas proclamem.
O expediente de satanizar o adversário revela, esta é a minha
opinião, indigência mental e despreparo para a convivência democrática. Intelectuais, incluídos
os jornalistas, não escapam destes
desígnios: as sagradas funções da
crítica e da dúvida sistemática
são atropeladas pela paixão política e, não raro, por interesses subalternos.
Poucos amigos foram capazes
de resistir aos encantos de FHC.
Digo mais: adversários históricos
e ferozes, nos idos dos anos 60,
chegaram a compará-lo a "Fidel
Castro sem barba". Estão terminando os seus dias prostrados
diante da figura presidencial. O
enlevo talvez seja justo. Mas houve quem mantivesse a amizade
sem abandonar o espírito crítico.
Um deles, especialmente qualificado para discernir e separar papéis, disse, sem arrependimentos
nem ressentimentos, que o desfecho do governo FHC resulta de
um tremendo erro de diagnóstico
quanto à natureza da globalização financeira e às políticas adequadas para enfrentá-la.
As políticas "inteligentes" prometiam tirar o país do atraso e
aproximar o padrão de vida dos
brasileiros daqueles gozados pelos
povos do Primeiro Mundo. Isso
seria feito mediante a abertura
da economia, a liberalização financeira, o recuo do Estado, as
privatizações, a flexibilização do
mercado de trabalho e a reforma
da Previdência Social.
FHC e sua equipe apostaram na
generosidade dos capitais que
deambulavam pelo mundo. A finança globalizada cuidaria de
buscar as oportunidades mais lucrativas, nivelando os pobres com
os ricos: as oportunidades de ganho na periferia são mais elevadas do que as existentes nos países
centrais. Nossos déficits em conta
corrente seriam cobertos pelo influxo benfazejo do dinheiro-capital que circula pelo mundo, cuidando de igualar os rendimentos
sem desprezar nenhuma informação. Ainda de quebra, nosso
incontrolável impulso cosmopolita poderia ser finalmente saciado
pela importação dos computadores de última geração, de carrões
japoneses de luxo, de verduras
frescas francesas, de calcinhas da
Indonésia e de sutiãs da China.
As classes endinheiradas gargalhariam.
Não vou juntar-me aos que costumam praticar o conhecido esporte de chute ao cadáver, muito
apreciado nestas paragens. Se está longe de ser o herói pretendido
pelos admiradores, é certo que
professor Cardoso não é o único
vilão do drama financeiro. Um
drama que estamos protagonizando pela enésima vez.
É preciso reconhecer, no entanto, que o presidente FHC cumpriu
com perfeição o mandato que lhe
foi outorgado pela turma da tripa
forra, os de fora e os de dentro.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
de São Paulo (governo Quércia).
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