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OPINIÃO ECONÔMICA
O Renascimento e o relógio-cuco
RUBENS RICUPERO
"Na Itália, por 30 anos,
sob os Bórgias, tiveram
guerra, terror, homicídio, sangue
e produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento.
Na Suíça, tiveram amor fraterno,
500 anos de democracia e paz e o
que produziram...? O relógio-cuco." A tirada, uma das mais inesquecíveis do cinema, foi contribuição pessoal de Orson Welles,
que conseguiu a proeza de "roubar", com uma frase, a glória do
roteiro escrito por Graham Greene para "O Terceiro Homem".
Acabo de voltar de Viena, onde
revi a roda-gigante do Prater. É
ali que se passa a cena que fixou o
renitente estereótipo dos suíços.
Não é preciso dizer que, apesar do
brilho teatral, a tirada do personagem Harry Lime é simplista e
falsa em relação tanto à Renascença italiana quanto à democracia suíça. Séculos antes dos Bórgias, já no Duzentos e no Trezentos, Florença alcançava a plena
alfabetização de todas as crianças
e uma proporção considerável delas atingia o estudo das matemáticas e as escolas superiores. Isso
tudo graças ao autogoverno da
próspera cidade-Estado mercantil antes do domínio dos déspotas.
Foi então que floresceram Dante,
Giotto, Petrarca, Bocaccio, os poetas do "dolce stil nuovo", sem
mencionar, em outras partes da
Itália, o maior dos santos, Francisco de Assis, Tomás de Aquino,
os pintores e os arquitetos venezianos.
A fala de Welles tampouco faz
justiça aos helvéticos, que, além
de luzirem nas artes da relojoaria, na qual, aliás, foram precedidos pelos holandeses, também
produziram Pestalozzi e o começo
da pedagogia moderna, Rousseau, Benjamin Constant, Mme.
de Staël, Ferdinand de Saussure e
a linguística atual, Jean Piaget, Le
Corbusier, Giacometti, Dürrenmatt, Godard, sem esquecer o historiador que mais fez para associar as palavras Itália e Renascença, Jacob Burkhardt.
Nada disso impede que a comparação reintroduza o debate sobre o tema apaixonante e perigoso das relações entre sistema político e criatividade cultural, o qual
pode ser invertido como o vínculo
entre cultura em geral, no sentido
mais amplo, abrangente da dimensão histórica e os resultados
em termos de vida política, progresso econômico, dinamismo inventivo nas artes. Os economistas
e cientistas sociais costumam correr do assunto do mesmo modo
que os historiadores olham com
desconfiança as tentativas "à la
Toynbee" de identificar os motivos da ascensão e declínio das civilizações. Essas sínteses globais
lhes aparecem como não-científicas, evocativas de preconceitos como os estereótipos dos diversos
caracteres de povos, contra os
quais nos alertava, há mais de
meio século, nosso saudoso professor Dante Moreira Leite. O último intento nesse sentido foi o de
Huntington com a tese do "choque das civilizações", oportunisticamente manipulada para demonizar os muçulmanos. Mas, apesar dos pesares, o tema ressuscita,
pois ninguém resiste à tentação
de explicar por que alguns povos
dão certo e outros não.
Essas considerações vêm a propósito do terremoto que abala a
Suíça, país onde, tudo contado,
tenho vivido mais de 12 anos e pelo qual sinto admiração e estima.
A democracia helvética é única e
original, com elementos da democracia direta dos gregos, como o
frequente recurso a referendos e
até a sobrevivência, em pequenos
cantões, da "assembléia do povo",
a reunião em que todos os cidadãos, reunidos em praça pública,
votam com a mão erguida, como
em Atenas. Outro desses resquícios é a idéia de que a Suíça não
tem Exército porque é um exército, isto é, cada cidadão faz serviço
militar todos os anos e guarda as
armas em casa. Governado por
um Conselho Federal de sete ministros, que se revezam a cada
ano na Presidência protocolar, o
país é quase um milagre histórico
de harmoniosa convivência entre
povos de quatro línguas diferentes e duas tradições religiosas
opostas, no coração de um continente dilacerado por guerras, genocídios e tenazes ódios raciais.
A chave desse milagre é a herança da democracia ao nível das
comunas, com a maior parte dos
poderes concentrada nos municípios, o relativo igualitarismo e
homogeneidade -nunca tiveram feudalismo- e o culto do
compromisso, o senso de medida
e estabilidade, esta última expressa na fórmula de equilíbrio dos
partidos no governo. Havia décadas que essa fórmula não mudava: dois ministros socialistas, dois
democratas-cristãos (centro),
dois radicais (direita) e um da
União Democrática do Centro
(extrema direita). De repente,
graças a um líder controvertido e
agressivo, mesmo em relação à
tradição consensual, a extrema
direita, neoliberal em economia,
hostil ao ingresso na ONU e na
União Européia, ao aumento de
imigrantes e de refugiados, ganha
a eleição de outubro, explorando
a crise econômica, a frustração
decorrente do desemprego, a falência da Swissair, a insegurança
provocada pela globalização e as
ameaças à identidade suíça provenientes da unificação da Europa. Completando o triunfo, ela
vem agora de eleger no Parlamento seu líder, Blöcher, como o
segundo representante do partido
no governo, alterando a fórmula
tradicional e expelindo uma ministra democrata-cristã, fato que
não ocorria havia 130 anos (aqui,
os ministros partiam por vontade
própria, após tempo razoável de
serviço).
Não admira que tanta desmesura gere ansiedade em nação
que tem horror aos excessos na
política e na vida, bem como a líderes carismáticos ou demasiado
brilhantes. A busca do consenso
para desarmar conflitos é o traço
característico dessa sociedade.
Todo mundo sabe que a Suíça é
neutra, não participa de guerras.
Quantos sabem, porém, que, em
contraste com a Itália, com a
França, com a Alemanha, aqui
-escrevo de Genebra- quase
não há greves? Muitos contratos
coletivos trazem a cláusula da
"paz perpétua", pela qual só se
paralisa o trabalho após esgotados infindáveis estágios de conciliação. Essas virtudes serão postas
à prova pela guinada à direita, temendo-se que a nova maioria governamental reduza os gastos públicos, corte os benefícios sociais e
intensifique a campanha contra
estrangeiros e a adesão à UE, eco
do populismo vitorioso em outras
eleições européias.
Até que ponto serão os suíços
uma vez mais capazes de provar
que seu maior talento é a capacidade de gerir as tensões de uma
sociedade relativamente pequena, mas complexa, sem violência
nem opressão de minorias, por
meio de compromissos e flexibilidade? Muito mais que o relógio-cuco, essa é a grande superioridade que fez de território montanhoso, sem recursos naturais,
com menos de um quarto da superfície do Estado de São Paulo e
metade da população da capital
paulista, um dos países de mais
alto bem-estar do mundo. E, em
que pese o cinismo de Welles, para um europeu do século 20, nascer numa das brilhantes culturas
vizinhas à Suíça poderia tornar a
vida mais excitante, mas indiscutivelmente aumentava muito a
chance de terminá-la com morte
matada em trincheira, debaixo
de bombardeio aéreo ou de tortura em campo de concentração.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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