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OPINIÃO ECONÔMICA
A banalização da guerra
RUBENS RICUPERO
Se os 11 anos transcorridos entre a queda do Muro de Berlim e os atentados do 11 de setembro merecem o nome de período
pós-Guerra Fria, como deveríamos chamar a fase que veio depois? Nada que sugira paz ou superação da guerra seria apropriado.
Quem melhor descreveu o impasse acarretado durante a Guerra Fria pelo equilíbrio do terror
nuclear foi Raymond Aron, com
sua síntese irretocável: "Paz impossível, guerra improvável". Ele
se referia, é claro, à paz ou à guerra entre as duas superpotências e
seus respectivos blocos, o armagedon nuclear para acabar com tudo. Na periferia do sistema, os
conflitos eram concebíveis, mas
mesmo aí perigosos, devido ao
risco de os menores envolverem
suas potências protetoras, como
quase ocorreu na crise dos mísseis
de Cuba.
Muito mais cedo do que se esperava, a profecia de Aron se dissolveu no ar. Afinal, a paz mostrou-se possível entre os EUA e não a
URSS, mas a velha Rússia. Enquanto a extrema direita americana adia taticamente o projeto
de fazer da China o próximo "adversário estratégico", não se perfila no horizonte o risco plausível
de um confronto mundial.
Em compensação a guerra local, limitada, não só deixou de ser
improvável como passou a ser cada vez mais acessível, imaginável,
quase "normal". A tendência começa com a Guerra do Golfo, sofre um contratempo sério com a
intervenção na Somália e ressurge, de início, de forma vacilante
na Bósnia, e depois, com vigor, no
Kosovo e no Afeganistão. O que
existe em comum entre o primeiro e os dois últimos exemplos é
que, em todos eles, a vitória foi
fulminante, bem antes e mais fácil do que o previsto, o custo em
sangue para os vitoriosos sendo
mínimo, quando não inexistente.
No começo da Guerra do Vietnã,
personalidades como Mac Namara estavam certas de que os miúdos guerrilheiros vietcongues não
eram páreo para a superioridade
aérea e a sofisticação tecnológica
americana. Naquela ocasião, no
entanto, tais instrumentos não
serviram de muito, ou por não estarem no ponto ou porque a natureza do conflito -guerra de libertação nacional, anticolonial- não se prestava ao seu uso.
O trauma vietnamita matou por
longos anos o apetite de aventuras bélicas nos EUA, onde o Congresso chegou a proibir as intervenções na África. Aos poucos, todavia, os Estados-Maiores foram
polindo suas ferramentas e, a
princípio limitadamente, ensaiando a fórmula aperfeiçoada
da nova "blitzkrieg", da guerra-relâmpago "limpa", em Granada
e no Panamá.
Antes de passar à ação no Golfo,
os americanos ainda hesitavam.
Saddam ameaçava com a "mãe
de todas as guerras". Muitos levavam a sério o que se dizia de o
Iraque ter o "quarto maior exército do mundo", com armas ultramodernas. Na hora H, foi o que se
viu: os aviões não conseguiram
decolar, as baterias antiaéreas
não acertaram um só alvo. Ou as
formidáveis armas eram imaginárias ou de nada adiantou ter
comprado o equipamento sem
dispor de sociedade com nível de
modernidade capaz de utilizá-lo
eficazmente. Esses sucessos foram
seguidos por outros. Os sérvios, temidos pela resistência feroz aos
alemães, tampouco aguentaram
o tranco. Os legendários e supostamente indomáveis guerrilheiros afegãos, invictos diante dos
soviéticos, os misteriosos e barbudos terroristas, evaporaram-se.
Consolidou-se um padrão: desde
que não se mexa com os grandes
-China, Rússia, Índia, exatamente os dotados de armas de
destruição de massa- os demais
podem ser despachados de maneira sumária, expeditiva e relativamente barata em termos de
vidas humanas, as próprias obviamente, uma vez que as perdas
se concentram quase com exclusividade do lado alheio, combatentes ou civis, deploradas como os
inevitáveis "danos colaterais".
Graças à tecnologia, os americanos parecem perto de realizar o
sonho da invulnerabilidade dos
antigos gregos, que a atribuíam a
heróis míticos como Héracles ou
Aquiles, esses mesmos com seu
ponto fraco ou seu calcanhar sensível. Se na equação da guerra os
benefícios começam de longe a ultrapassar os custos, se deixa de
existir o "fog of war", o "nevoeiro
da guerra", isto é, sua imprevisibilidade, não admira que o recurso à força militar passe a ser o
meio preferido para resolver problemas desagradáveis. A incomparável geração de estadistas
americanos que gravitavam em
torno de Franklin e Eleonor Roosevelt havia concebido o conceito
de segurança coletiva como pedra
angular da Carta da ONU. Em
caso de grave ameaça à paz e segurança internacionais e esgotados todos os outros meios, o uso
da força só poderia ser feito mediante processo decisório coletivo
dotado de todos os contrapesos
para evitar precipitação ou abuso. Aquela, porém, era geração
que sofrera e aprendera com a
Grande Depressão e a Segunda
Guerra, que fora capaz de criar o
New Deal e o Plano Marshall. O
perigo hoje é que, em vez de "ultima ratio", a guerra se converta
em algo de banal, mercadoria
corriqueira e de bom preço, quem
sabe competindo com as crises financeiras para ver qual delas se
repetirá com maior frequência.
Não é, convenhamos, perspectiva
civilizatória que nos prometa um
século melhor do que o que deixamos para trás.
Na 1ª leitura do Ofício de Matinas de 4ª feira, 11 de setembro, o
profeta Habacuc adverte os poderosos do seu tempo: "As riquezas
enganam o homem arrogante, e
ainda que ele seja insaciável como a morte, que recolha para si
todas as nações e ao seu redor
congregue todos os povos, ele não
permanecerá!". O texto é misteriosamente sugestivo para os dias
que correm e recomendo-o a todos (Hab, 2, 5-20). Termina numa bela nota de esperança: "Porque a terra será repleta do conhecimento da glória do Senhor, como as águas enchem o mar!".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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