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OPINIÃO ECONÔMICA
Nossa América e a dos outros
RUBENS RICUPERO
"Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água." É
só isso que serve de epitáfio a John
Keats, no cemitério protestante de
Roma. Com idêntico sentimento
de fracasso e desesperança, seu
contemporâneo de romantismo,
Simón Bolivar, semanas antes de
morrer abandonado em Santa
Marta, na véspera da partida para o exílio, usou a mesma imagem da água ao escrever que
"aquele que serve uma revolução
ara no mar". Além dessa frase célebre, deixou-nos o moribundo
outra, por razões compreensíveis
pouco citada, mas inconscientemente seguida por milhões e milhões de indivíduos: "Em nossa
América, só há uma coisa a fazer:
emigrar!".
Nossa América, dizia o Libertador, para distingui-la da América
deles, dos outros, a do Norte, na
qual, para começar, os pais da pátria, Washington, Jefferson, morriam cobertos de honra, sem temor de serem escorraçados e proscritos, quando não assassinados,
como Sucre. Desde o início, a que
teve o melhor ponto de partida
encarnou a idéia da terra da promessa, a que impressionou Tocqueville, serviu de modelo às falsas cópias dos demais e de pólo de
atração às massas de trabalhadores da Irlanda, Alemanha, Itália,
judeus da Europa oriental. A partir de meados do século 19, o sonho de "fazer a América" contagiou a outra metade, e não faltaram imigrantes europeus, árabes,
judeus, japoneses, para ajudar a
povoar as paragens meridionais.
Esse movimento, do qual muitos no Brasil somos os herdeiros,
estendeu-se até os primeiros anos
após a 2ª Guerra Mundial. Desde
então, o fluxo se estancou para
depois inverter bruscamente de
sentido, passando a fluir do sul
para o norte, para a outra margem do Atlântico e do Pacífico.
Como diz meu amigo Sérgio Danese, hoje "a América são eles", isto é, os EUA, mas também a
França, a Itália, a Espanha, a Inglaterra, o Japão, a Suíça, até o
pequeno Portugal. A esperança
de vida melhor mudou de lado, e
não há sinais de que tão cedo voltaremos a tê-la do nosso.
A Argentina é o exemplo mais
dramático dessa reviravolta. Em
termos relativos, nenhum país,
mesmo os EUA, deve tanto aos
imigrantes como a terra de promissão por excelência, a Argentina de 1880 a 1914. Transformada
agora em país de emigração, apesar de subpovoada, em vias de
perder muitos de seus melhores
talentos, a vizinha nação registra
a cada ano balanços negativos
mais altos entre partidas e chegadas. Já os mexicanos começaram
cedo, desde o início do século 20, a
emigrar para os EUA, mas o movimento se acelerou enormemente nos últimos 20 anos. Em 1980,
haviam sido oficialmente registrados nos EUA perto de 2,2 milhões de mexicanos, cifra que saltou para 4,3 milhões, em 1990, e a
7,5 milhões, em 1998. Um caso extremo é o de Porto Rico, cuja população era de 3,8 milhões (1998),
ao passo que outros 2,7 milhões, o
equivalente a 70% do total, viviam nos EUA.
Aliás, esse é, ao lado do intercâmbio comercial, outro aspecto
que diferencia nítida e crescentemente o norte em relação ao sul
da América Latina. Tanto em
matéria de exportações e importações quanto na direção dos fluxos migratórios, o México, o Caribe, a América Central se caracterizam por um grau muito mais
intenso de concentração nos EUA
do que os mais distantes países
sul-americanos. Em outras palavras, a integração das nações setentrionais com o espaço econômico norte-americano se faz não
só por meio das trocas comerciais
mas também pela exportação de
mão-de-obra.
Para ter idéia de como se tem
acentuado essa tendência, vale
lembrar que, nos anos 1980, um
terço da migração legal para os
EUA provinha do Caribe, calculando-se, em nossos dias, que caribenhos e mexicanos respondem
por 80% a 90% dos 8 milhões de
clandestinos (54% mexicanos). O
mesmo ocorre com a América
Central: ao longo dos últimos 175
anos, cerca de 1,1 milhão de centro-americanos ingressaram como imigrantes nos EUA, mas
90% chegaram depois de 1980.
No sul, as partidas também se
intensificam, mas as destinações
são mais diversificadas, embora
os EUA conservem a primazia. Os
equatorianos que emigraram são
16% da população ativa, boa parte nos EUA, constituindo, ao mesmo tempo, a principal mão-de-obra da agricultura do sul da Espanha. Estima-se que 2,2 milhões
de peruanos tenham emigrado e
cerca de 300 mil abandonem o
país anualmente, muitos dirigindo-se igualmente à Espanha e a
destinos latino-americanos. O
Brasil, com mais de 2 milhões de
nacionais no exterior, possui a
originalidade de um forte contingente, talvez 250 mil, no Japão.
O fenômeno é mundial -200
milhões emigram por ano- e
traz benefícios inegáveis. A título
individual, como instrumento de
mobilidade social, de que se encontra um bom exemplo no secretário de Estado americano, Colin
Powell, filho de jamaicanos. Para
os EUA, sonho da maioria, as
vantagens vão dos cérebros do
Vale do Silício ao "exército de reserva" de mão-de-obra que possibilitou acelerar o crescimento,
mantendo deprimidos os salários.
Para os países exportadores de
gente, além do alívio da pressão
demográfica, a recompensa vem
pelas remessas financeiras dos
emigrados, equivalente em 2002 a
US$ 32 bilhões para a América
Latina, 31% do total mundial, do
qual 78% veio dos EUA.
O México sozinho recebeu US$
10,5 bilhões, o dobro das exportações agrícolas, mais que o turismo
e dois terços do petróleo. A América Central ganhou US$ 5,5 bilhões, o Caribe, US$ 5,45 bilhões, e
os andinos, US$ 5,4 bilhões. O
BID, fonte dos dados sobre remessas (os relativos às migrações são
da Organização Internacional
para as Migrações), calcula que
as remessas para o Brasil em 2001
tenham sido de US$ 2,6 bilhões,
mas julga que a cifra está aquém
da realidade.
É esse o panorama da nossa
América, sobretudo depois de
1980. A deles, não apenas os EUA,
mas o Canadá, a Austrália,
oriundos do mesmo movimento
de colonização, não precisa exportar gente. Cada um tirará disso a conclusão que quiser. De minha parte, prefiro ficar com a do
"Clarín", de Buenos Aires. Em artigo sobre a mobilização popular
após a crise argentina, dizia o jornal que a resposta mais frequente
à pergunta acerca do sentido dessa mobilização era simplesmente:
"Porque não quero que meus filhos tenham que ir embora do
nosso país!".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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