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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
As heranças malditas e a esperança
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A esperança é a última que
morre! Um velho provérbio
que aprendi menina na minha
terra natal. Suas raízes parecem
estar na lenda mitológica da
abertura da caixa de Pandora,
quando a esperança resistiu até o
fim, não seguindo os males que se
espalharam pelo mundo.
Na última Quarta-Feira de Cinzas, passado o primeiro Carnaval
da "Esperança vence o medo", ao
retomar a leitura dos jornais, fui
obrigada a refletir de novo sobre a
guerra e a fome, duas das heranças malditas contra as quais
grande parte da humanidade tem
lutado por milênios. O medo dos
cavaleiros do apocalipse sempre
me invade ante a iminência de
uma guerra, cujos efeitos e duração são incalculáveis.
Para surpresa minha, a crônica
que mais me levantou o moral sobre os "tambores da guerra" no
Oriente Médio foi a de Paulo Coelho ("Obrigado, presidente Bush",
publicada nesta Folha, 8/3/2003).
Nunca se viu tamanha unidade
entre povos de todas as nações
contra o início de uma guerra como a atual. As almas dos pacifistas e dos internacionalistas derrotados nos últimos séculos por "razões de Estado" devem estar em
paz finalmente.
A propaganda e a máquina de
guerra do império anglo-saxão
contemporâneo não conseguiram
justificar essa guerra em termos
defensivos nem mesmo para uma
parte substancial dos cidadãos
norte-americanos -e muito menos para os ingleses. A justificativa "moral", a luta do bem contra
o mal, também não funcionou
-talvez por se tratar de uma
guerra encharcada em petróleo e
arrogância.
Outras heranças malditas, como a fome e as epidemias, também não recebem justificativa
"moral", nem mesmo das elites
do poder e do dinheiro mais esclarecidas. A fome não é mais considerada um fenômeno natural ou
geográfico sujeito a uma "lei"
malthusiana. Sua generalização,
não apenas às populações dos
países "atrasados" mas também
às metrópoles dos países desenvolvidos, contrasta com a enorme
produção mundial de alimentos.
O combate à fome e à desnutrição é hoje considerado uma ação
prioritária, aceita formalmente
na agenda internacional das
agências multilaterais, tamanha
é a sua extensão à escala mundial. A solução permanente da fome passa, porém, por uma luta
continuada que agregue medidas
de emergência a reformas estruturantes que tomem a questão da
inclusão social como eixo das políticas públicas. Esses esforços têm
de ser realizados pela ação conjunta dos Estados e das sociedades nacionais com o apoio das organizações internacionais, numa
perspectiva de longo prazo de
maior justiça social e de desenvolvimento sustentável.
Infelizmente, as distorções das
últimas duas décadas de neoliberalismo puseram em xeque as reformas progressistas do pós-Segunda Guerra Mundial e minaram os propósitos e as práticas da
construção e da universalização
das políticas do Estado de bem-estar. A universalização da seguridade social e o pleno emprego
parecem metas mais difíceis de
alcançar hoje do que há 30 anos,
quando eram aceitas e praticadas
nos países desenvolvidos, mesmo
nos mais conservadores.
A volta dos fanatismos do mercado, do deus único e do império
único minaram a capacidade dos
Estados nacionais de seguir os
avanços democráticos que foram
sendo ampliados a partir das
constituições originárias das chamadas revoluções burguesas. As
reformas sociais tiveram avanços
significativos na Grande Depressão dos anos 30 e no pós-Segunda
Guerra Mundial. A extensão da
crise atual deve colocar de novo
em pauta, além dos direitos humanos, a inclusão dos direitos sociais, uma vez que o processo civilizatório não é interrompido senão temporariamente por guerras e imperialismos.
Todos os impérios modernos
usaram duas justificativas para
as guerras de conquista e o colonialismo: o nome de Deus e as
pretensões a serem os portadores
da civilização universal. O avanço do processo civilizatório global
não é privilégio de nenhum Estado nacional, por mais poderoso
que seja. Essa é hoje uma convicção crescente, sobretudo depois
da guerra do Vietnã, da derrocada da URSS e do soerguimento
econômico e social das velhas civilizações asiáticas. É verdade
que permanece a dominância
cultural do paradigma da sociedade de consumo e do individualismo utilitarista que teve seu clímax nos EUA, a mais rica economia do mundo no século 20. Não
é fácil, porém, encontrar hoje em
dia quem queira copiar o "american way of life", tamanha foi a
desagregação moral e societária
produzida no interior da própria
sociedade norte-americana.
Não havendo "modelo" para
copiar -nem o soviético, nem o
norte-americano, nem o chinês,
nem o japonês e, infelizmente,
nem os do norte da Europa-, os
povos das várias nações estão
mais do que nunca obrigados a
buscar o seu próprio caminho, levando em conta os erros e acertos
do seu próprio passado e as experiências benéficas do processo civilizatório global.
O número de Estados independentes aumentou no pós-guerra,
com o processo de descolonização
nas várias regiões do mundo. É
impossível impor um modelo único de Estado e de organização social a centenas de países. É possível, no entanto, promover uma
luta humanitária comum pela vida desde que as elites cosmopolitas e os Estados nacionais aceitem
a nova agenda de que "um mundo melhor é possível". Tanto os
milenarismos apocalípticos
quanto os maniqueísmos da luta
do bem contra o mal estão sendo
varridos para o lixo da história.
Essa é uma nova esperança, de
longa duração, que reatualiza o
velho humanismo.
Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@cdsid.com.br
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